domingo, 11 de abril de 2021

PND - O DEVER DA ESPERANÇA

O DEVER DA ESPERANÇA

DE TODOS OS CRIMES COMETIDOS contra o Brasil nos últimos três anos, o mais triste foi o roubo da esperança. Se pudéssemos atribuir doenças a países, eu diria que o nosso hoje está em depressão, e não só econômica. Por onde quer que andemos vemos abulia, uma profunda desilusão, um ressentimento contra o próprio país e seus concidadãos, uma vontade de abandonar a própria pátria numa tentativa desesperada de garantir um futuro melhor para os filhos.

Em parte dessa depressão está um sentimento difuso de perda de amor pela nossa pátria, como se aquele país diverso, tolerante, pacífico, alegre, de cultura rica e exuberante que aprendemos a amar tivesse sido um sonho, uma ilusão juvenil.

Mas eu não tenho o direito de me abater, porque o Brasil me deu tudo. Me deu renda e comida através de pais amorosos e trabalhadores, me deu educação pública de qualidade, me capacitou, me honrou com a confiança de um mandato após o outro e depois com os prêmios máximos do carinho, confiança e gratidão de meu povo.

Eu tenho o dever de ter esperança.

Eu tenho esse dever porque minha geração ganhou todas, e ganhou por meio do milagre da política. Reunimo-nos para redemocratizar o país e o redemocratizamos. Reunimo-nos para vencer a superinflação e a vencemos. Reunimo-nos para acabar com a fome e acabamos com ela.

Eu tenho esse dever porque tenho filhos, uma neta e outro netinho, que acabou de nascer, e tenho como filhos e netos milhões de novos brasileiros que merecem ter as oportunidades que tive um dia. Foi a essa luta que entreguei minha vida.

Eu tenho o dever da esperança, porque de tantos brasileiros o direito a ela foi tomado.

A tarefa é árdua, mas não podemos desistir. Nós já reconciliamos um país depois de uma ditadura, por que não o reconciliaríamos agora o suficiente para colocar as pessoas de novo em torno da mesma mesa? Pessoas da mesma família, amigos de infância, colegas de trabalho não podem mais conversar? Eu não vou aceitar meu país dilacerado por intolerância política e rótulos enquanto seus inimigos o depauperam e roubam seu futuro.

Não, com fé em Deus e em meus compatriotas, continuarei tentando. Quero conversar (não bajular) com todos os brasileiros que quiserem debater o país. Falar francamente com os empresários que estão falidos, o microempreendedor que está esmagado, a classe média que está pobre e o pobre que está miserável, o trabalhador que está sem direitos, o aposentado que está com proventos atrasados, o desempregado que está desesperado, a esquerda e a direita que falharam tragicamente, e tentar mostrar que esse modelo que tem nos garroteado há 25 anos faliu, nos faliu, e não pode mais continuar nem por um único dia.

Acredito que conseguiremos mudar a pauta do debate e colocar o Brasil novamente para dialogar. Por que não seria possível? Quando é que uma transformação social numa sociedade democrática foi diferente? Somos milhões de brasileiros – entre os quais empresários, operários, autônomos, comerciários, servidores públicos, trabalhadores rurais e aposentados, intelectuais, artistas – levados ao limite de nossa capacidade de suportarmos a exploração para enriquecer ainda mais uma casta de 0,01% de privilegiados.

Pessoas que recebem essa riqueza sem qualquer origem meritória e sem que por ela tenham produzido ou arriscado qualquer coisa. Somos uma nação devastada por agiotas. Temos que ter esperança de livrar este país do parasitismo, pois qual é a nossa opção? Voltarmo-nos uns contra os outros numa luta fratricida pelos restos do rentismo? Uma luta minuciosamente alimentada por seus sócios? Empresários vs. trabalhadores, mulheres vs. homens, brancos vs. negros, trabalhadores privados vs. servidores públicos, militares vs. civis? 

Compatriotas, o Brasil chegou ao seu limite, e nos anos vindouros pode estar chegando a hora de sua última chamada. Esta pode ser a última chamada para aproveitar a janela internacional de juros negativos e realizarmos uma transição suave para fora do rentismo.

Esta pode ser a última chamada para mantermos o que restou de nossa indústria e desenvolvermos setores ainda viáveis. Esta pode ser a última chamada para salvarmos o Estado-nação e termos um país soberano diante da escalada tecnológica das grandes potências.

Não é coincidência que o neoliberalismo nos tenha destruído três vezes, com Collor, FHC e Dilma-Temer. Agora o veremos em sua face mais cruel na gestão do ministro Paulo Guedes. Não é coincidência que desde que essa máquina de destruição econômica conseguiu hegemonizar o discurso de nossa mídia e classe política, o país tenha sido acorrentado à beira de um abismo para ter seu fígado comido todos os dias pelos abutres da agiotagem nacional e internacional.

Temos que libertar o gigante. Chega de autodesprezo. Somos brasileiros, nós fizemos o país que mais cresceu no século XX, o país que se industrializou em trinta anos. Não podemos assistir impávidos a um governo destruir o país para servir a interesses estrangeiros.

Não precisamos procurar no exemplo chinês ou sul-coreano o caminho de nosso crescimento. Embora possamos e devamos aprender com suas experiências, nunca ninguém fez mais e mais rápido do que nós mesmos já fizemos um dia.

O exemplo somos nós. Podemos adaptá-lo aos novos tempos e às novas limitações e evitar seus erros conhecidos. É a tarefa de nossa geração. Atenda como eu essa chamada do destino, do dever para com nossos filhos e netos e todos os brasileiros que jamais conheceram boas oportunidades na vida. Junte-se a nós para romper a barreira de silêncio da grande mídia sobre a exploração dos juros ao consumidor e às empresas, a destruição da capacidade de investimento do Estado e a falta de um projeto de desenvolvimento.

Junte-se a nós para lutar sem cessar contra o projeto de destruição nacional que está sendo implementado por esse governo. Sim, são todas grandes ambições. E tem se dito de mim a vida inteira que sou um homem ambicioso. Eu sou. Tem se dito de mim que minha grande ambição é ser presidente da República. Sim, eu quero. Eu quero muito servir ao meu país como presidente. Mas essa não é a minha ambição. Se ser presidente fosse a minha verdadeira ambição, eu, que aos 37 anos já tinha sido o prefeito e governador mais popular do país e ministro da Fazenda, que tinha acabado de ajudar a eleger o primeiro governo nacional de um partido do qual era fundador, já teria feito os acordos e dado as cartas que me permitiriam angariar o apoio da mídia e dos bancos brasileiros, já teria prometido em sigilo entregar o país aos interesses internacionais, já teria ao menos sido o candidato do sistema duas ou três vezes, ou ainda me ajoelhado à arrogância personalista de quem acha que pode manter um país inteiro aprisionado à sua vontade.

Aos que pediam minha “Carta aos brasileiros”, deixo este livro. Nele, a reiteração dos compromissos de toda a minha vida. Porque minha verdadeira ambição não é ser presidente, minha verdadeira ambição é mudar meu país. Minha ambição é ajudar a transformar o Brasil no país fantástico que ele ainda pode ser. E se um dia eu tiver a honra de presidir este país, antes de tomar posse me despedirei de minha família que amo tanto e entrarei no cargo preparado para mudar o Brasil ou morrer tentando.

Se não tiver, continuarei com a outra honra de dedicar minha vida política à luta para debater com as novas gerações sobre os problemas brasileiros e a necessidade de seguirmos projetos, não pessoas.

Já minha ambição ao escrever este livro é a de despertar em você, que me deu a honra de ler algumas de minhas ideias, um pouco dessa ambição, para que nos ajude nessa caminhada. Todo dia de manhã, eu venço o impulso de me vergar à tristeza pela situação de nosso país e a transformo em revolta para sair a mais um dia de luta. Se é muito pedir isso a você, peço ao menos que, não importa o que tenha acontecido ou venha a acontecer ainda, não permita nunca que alguém o faça sentir vergonha de ter esperança em seu próprio país. Porque ter essa esperança não é nada mais do que nosso dever para com nossos descendentes.

PND - POR UMA NOVA ESQUERDA

POR UMA NOVA ESQUERDA

NO MOMENTO EM QUE a desigualdade no mundo alcança níveis alarmantes e crescentes, que o neoliberalismo se desmoraliza e deixa seu rastro de destruição por onde quer que tenha passado, a esquerda é derrotada na maior parte das democracias ocidentais e assiste perplexa à ascensão da extrema direita. Se isso não é sinal de que a esquerda tradicional tem errado muito, não sei o que seria.

Refletir sobre esses erros e mudar de rumo é fundamental. Quero aqui, no último capítulo deste livro, propor para reflexão algumas ideias que tenho discutido pelo país, aspectos que, acredito, possam ser parte dessa resposta, assim como propostas para uma nova atitude progressista, com o resgate de valores fundamentais não só para nosso povo, mas para toda a civilização.

Vamos tentar seguir o mesmo método: definição, diagnóstico e propostas de solução, primeiro no mundo e depois particularmente no Brasil.

HÁ AINDA SENTIDO EM FALAR DE ESQUERDA E DIREITA?

É comum ouvirmos a afirmação de que não existem mais esquerda e direita, de que “tudo é a mesma coisa”, ou ainda a piada de que a única diferença entre uma posição e outra é a mão que rouba.

Essa é uma atitude que nega a política, portanto está comprometida com a manutenção da sociedade como ela está. Por quê? Porque, ao negar diferenças entre projetos de sociedade e reduzir a política a um concurso para escolher o melhor gestor ou mesmo o assaltante preferido, se está assumindo a ideia de que não há nada a mudar na estrutura da sociedade ou que mudanças não são relevantes, nem mesmo possíveis. Precisaríamos somente de pessoas honestas e competentes para que tudo funcionasse bem. Pessoas honestas e competentes são fundamentais, mas a política é acima de tudo a escolha entre projetos diferentes para a sociedade.

Entretanto, o mais importante aqui é que a afirmação de que não existem mais esquerda e direita é falsa. A confusão muitas vezes se dá também porque esquerda e direita não são conceitos absolutos, mas relativos. As pessoas só são de “esquerda” ou de “direita” em relação a determinada situação concreta e momento histórico.

A origem desses termos para designar o campo político está na Revolução Francesa. Na primeira Assembleia Nacional, sentavam-se à direita os “girondinos”: a nobreza (defensora do Antigo Regime) e a alta burguesia (banqueiros e grandes empresários), sua aliada. A alta burguesia buscava conservar o statu quo, ou seja, eram “conservadores”, e os nobres queriam retroceder ao passado monarquista, ou seja, eram “reacionários”.

À esquerda sentavam-se os defensores de uma nova sociedade, os “jacobinos”. Esses eram constituídos basicamente de profissionais liberais, como médicos e advogados, comerciantes (os pequenos burgueses), camponeses e trabalhadores urbanos (os sans-culottes). Os primeiros, em sua maioria, buscavam apenas a igualdade de todos perante a lei, eram “liberais”; já os segundos pregavam a extinção das hierarquias econômicas e sociais da época.

Como podemos ver, naquela sociedade, recém-saída do absolutismo, um liberal era um representante da “esquerda”. Mas a definição do que sejam esquerda e direita do ponto de vista político depende geralmente de quem está oferecendo a definição e também de seu contexto histórico e geográfico.

Para a esquerda, que privilegia o valor da igualdade, o termo “esquerda” passa a designar o conjunto das organizações sociais que buscam a transformação da sociedade atual em direção a uma maior igualdade entre os cidadãos, enquanto “direita” passa a designar aqueles que querem conservar ou até ampliar a desigualdade, que é encarada como a justa diferença de riqueza entre pessoas que têm diferentes merecimentos.

Já para a direita, que privilegia o valor da liberdade, geralmente os termos designam a posição acerca do tamanho do Estado na economia. O termo “esquerda”, nessa perspectiva, designaria aqueles que defendem um Estado grande até o extremo de um Estado máximo, e “direita”, aqueles que defenderiam o máximo de autonomia econômica para os indivíduos até o extremo de um Estado mínimo, reduzido praticamente ao sistema judiciário.

Essa definição alternativa, disseminada pelo neoliberalismo, está associada à ideia de que o laissez-faire [1] sozinho promoveria o progresso humano. Sem se preocupar com a questão da igualdade ou do mérito, a crença é de que a riqueza gerada pela livre-iniciativa de indivíduos dirigidos por suas motivações individuais seria maior do que aquela que poderia ser gerada e distribuída pelo Estado interventor. Portanto, a desigualdade numa sociedade rica seria melhor que a igualdade numa sociedade mais pobre.

Do ponto de vista individual, a defesa dessa liberdade abstrata muitas vezes é uma retórica vazia assumida por grande parte da parcela mais rica da população para justificar a desigualdade, uma vez que sem condições materiais necessárias mínimas, nenhum indivíduo será livre, que dirá crianças que não pediram para nascer. Do ponto de vista coletivo, sabemos que nação alguma jamais progrediu consistentemente sem interação do mercado com um Estado forte, regulador e indutor. Os EUA, modelo da maior parte da direita brasileira, não existiriam sem a atuação do Estado americano no desenvolvimento tecnológico, nas compras governamentais e na abertura de mercados através da força militar e de sua agência de inteligência.

Embora essas duas definições de esquerda e direita quase sempre classifiquem os mesmos indivíduos nas mesmas posições no espectro político, existem falhas nessa correspondência. Por exemplo, não funciona quando consideramos que um Estado grande e interventor pode também ser colocado a serviço da concentração de renda, como ocorre no fascismo.

As constantes retomadas de discussões teóricas sobre graus de liberdade e igualdade na sociedade sempre tiveram funções políticas muito concretas, inclusive na atual confusão intencional que causam no debate público. Uma das principais é a que confunde esquerda com a mera defesa de liberdades individuais (o liberalismo) e direita com a defesa de valores tradicionais (o conservadorismo).

A defesa de que todos são igualmente livres para exercer sua sexualidade e religiosidade da forma que quiserem – desde que não cerceiem com isso a liberdade de outros – é uma bandeira antiga do liberalismo político que está presente na esquerda, mas também na direita liberal. Não define a disputa entre elas. Isso mostra que essa redução das diferenças entre esquerda e direita pelo viés dos costumes serve mais pelo que esconde do que pelo que revela. Essa ocultação é a fonte e a motivação desse extemporâneo ressurgimento do movimento conservador que hoje tenta se estabelecer como “a verdadeira direita”.

Tentando se vincular ao “reacionarismo” antigo, que designava um movimento de reação a alguns valores modernos e se afirmava como guardião da “tradição”, dos valores e do patrimônio cultural da Antiguidade, a direita conservadora atual cumpre função política muito distinta dos ideais que diz defender. Em sua origem, durante as revoluções do século XVIII, o conservadorismo se caracterizava pela desconfiança da mudança, que quando inevitável deveria ser o menos disruptiva possível, porque a desordem resultante de uma mudança radical desorganizaria a sociedade e destruiria o tecido social, cujo exemplo de fracasso e degradação seria a própria Modernidade. Em sua forma atual, sob pretexto de salvar o “Ocidente”, tem servido principalmente para vocalizar um conveniente discurso dos países centrais, seja para reordenar sua política interna, visando à manutenção das desigualdades dentro de seus países, seja para a política externa, intensificando a exploração dos países periféricos.

Apesar de esse discurso seduzir pessoas bem-intencionadas entre nós, movidas por respeitáveis preocupações de preservação das tradições e proteção da religiosidade popular, o que esse ideário tem gerado na prática é apenas um neoliberalismo de roupa nova, avesso aos valores do cristianismo.

Por isso, acho equivocado e perigoso assumirmos acriticamente ideologias importadas que, normalmente, trazem escondidas intenções que vão contra os interesses do nosso povo e do nosso país.

Na minha opinião, ninguém é de esquerda porque se diz ser ou gostaria de ser. O que determina se alguém é de esquerda é sua prática, é a posição que toma nas lutas concretas da sociedade e a obra que realiza quando tem poder. Da mesma forma, ninguém é de direita só porque pensa diferente de nós ou porque defende valores como eficiência, planejamento, honestidade, patriotismo e segurança pública. Muito pelo contrário, esses deveriam ser valores de toda a sociedade.

Enfim, a diferença entre esquerda e direita continua sob qualquer ponto de vista, mas a classificação de alguém como tal é sempre relativa à sociedade em que está atuando. Eu, por exemplo, se tivesse nascido na Coreia do Norte seria de “direita”, pois acredito na livre-iniciativa, no lucro moderado – a legítima remuneração do risco e do capital imobilizado do capitalista – e na diferença de remuneração entre seres humanos diferentemente capazes e esforçados como algo não só desejável e eficiente como justo. Também acredito no papel insubstituível da iniciativa privada na potência criadora da economia e na alocação de seus recursos de forma racional no nível local.

Da mesma forma, se eu fosse um nobre inglês, vivendo num país que aboliu a pobreza extrema e criou um Estado de bem-estar social com excelente serviço de saúde e educação, talvez me sentisse inclinado a defender a diminuição dos gastos do Estado e a colocar a valorização do legado cultural britânico acima de outras questões sociais. No entanto, nasci na periferia do capitalismo latinoamericano e preciso lutar para superar o subdesenvolvimento do meu país e sua brutal e injusta desigualdade. Aqui, eu sou “de esquerda”.

Sem querer me esquivar da definição de como me vejo no espectro político, diria que, sob o ponto de vista da classificação da esquerda, sou uma pessoa de centro-esquerda, que aceita a liberdade econômica com seus riscos potenciais de produção de injustiça, para fazer uso do poder criador da riqueza na estimulação fragmentada da livre-iniciativa. Do ponto de vista da direita, sou uma pessoa de centro, que não defende nem o Estado máximo nem o Estado mínimo, mas o Estado necessário.

Assim sendo, me considero de centro-esquerda. Eu diria que sou um social-democrata que tem grande admiração pelo modelo socioeconômico vigente nos países escandinavos ou na Alemanha. No entanto, sou um social-democrata latino-americano e conheço bem os imensos entraves em nosso continente à realização desse ideal. A social-democracia escandinava é o resultado de um longo processo de desenvolvimento e de lutas populares que se materializaram no contexto de uma Europa pressionada pela expansão do comunismo. Por isso, não basta copiarmos suas instituições e acreditar que teremos o mesmo resultado aqui. Para tanto, será necessário forjarmos nosso próprio caminho sem nunca nos esquecermos de quem somos. E nós já temos esse caminho próprio, o trabalhismo, que, como veremos adiante, é a forma brasileira da busca pelo ideal anunciado pela social-democracia.

Acredito que não é possível ser feliz numa sociedade infeliz, rodeado de pessoas vivendo em situação de sofrimento extremo, injustiça e crueldade.

Se você também acredita nisso e quer agir para mudar essa situação, então, compatriota, nós somos aliados quer você se identifique como sendo de esquerda ou de direita. Estamos juntos nesses objetivos econômico-sociais. O que temos que discutir é como podemos alcançá-los de forma mais eficiente e justa, sem interdições ideológicas. Identifique-se como achar que deve.

A CRISE DA ESQUERDA CONTEMPORÂNEA

Vivemos hoje um quadro de profunda crise capitalista em que o neoliberalismo fracassou rotundamente e a desigualdade volta a avançar no Ocidente. Diante dessa crise cultural profunda, a esquerda ocidental patina e vê parte de seus espaços perdida para a extrema direita.

Diante do imenso fracasso das políticas que têm diminuído o papel do Estado sem planejamento estratégico algum, esperando que o espontaneísmo do mercado seja o motor do desenvolvimento enquanto paga taxas de juros mais altas que o rendimento médio dos negócios, a retórica neoliberal sempre rejeita a responsabilidade pelas consequências nefastas de suas políticas (veja o colapso que aconteceu na Argentina neoliberal de Mauricio Macri [2]) dizendo que não deixaram dar a dose suficiente de seu remédio. Ou seja, eles sempre alegam que tudo deu errado porque não destruíram o Estado o bastante. Durante os governos neoliberais só a estagnação ou a catástrofe tem vez. A culpa, o neoliberalismo coloca na suposta “gastança” dos governos anteriores, e quando finalmente sai do poder e o país volta a se desenvolver, ele diz que o crescimento foi por causa de seu “ajuste” ou “modernização”.

Mas se o remédio é bom, ou a situação melhora ou o ritmo da piora tem que diminuir. A crença de que tudo tem que piorar muito antes de melhorar não é nada senão misticismo importado para a economia.

Este é o grande paradoxo do liberalismo econômico que precisamos expor: a suposta liberdade individual irrestrita afeta severamente a liberdade da maioria dos indivíduos. A médio prazo, o liberalismo econômico colapsa o liberalismo político, porque ele tira da maior parte da sociedade as condições materiais necessárias para exercer a liberdade. Liberdade absoluta é a lei da selva, portanto, a lei do mais forte. E o ideal do liberalismo político clássico nunca foi garantir a liberdade absoluta, porque isso é o oposto da vida em sociedade, e sim a maior quantidade de liberdade possível para todos os cidadãos igualmente. Deixo a você, caro leitor, a conclusão dessa reflexão.

O outro extremo desse espectro também não nos interessa. A democracia é um valor inegociável, e a eficiência econômica deve sempre ser meta numa sociedade. Produzir mais e de forma mais eficiente não é um valor da direita. Significa produzir a mesma quantidade de bens utilizando menos trabalho e menos tempo de vida de seres humanos. Defender modelos socialistas (ou comunistas) ideais que nunca existiram é o equivalente, na esquerda, à defesa radical que alguns setores da direita fazem do neoliberalismo, que não oferece um único caso de sucesso no mundo.

Chamamos essa posição de “esquerdismo”. Ao contrário do que possa parecer, o esquerdismo não é a posição mais comprometida com a diminuição da desigualdade e com o desenvolvimento real, pois ela é, no concreto, uma posição sectária descolada da realidade atual e de suas correlações de força e conjuntura. O esquerdismo é uma “doença infantil do comunismo”, como dizia Lenine, não o extraordinário cantor e compositor pernambucano, mas o velho revolucionário soviético. O imobilismo gerado por sua “pureza” ideológica impede a transformação das condições de vida concretas da população que vive e sofre hoje, em troca de um futuro ideal (para eles) que nunca chega.

Normalmente, suas teorias impõem, como passo inicial para a ação efetiva, trocar de povo. Como essa arrogante e desrespeitosa etapa do processo revolucionário idealizado por eles não é possível, se fecham em suas intermináveis discussões teóricas, enquanto maldizem a incapacidade do povo de merecer seus libertadores.

Então, o que fazer? Neste item, vou tentar apresentar algumas pistas que, acredito, vão nos ajudar a pensar o problema, e o fazendo, talvez também oferecer algum indicativo de parte da solução.

Um novo consumismo globalizado

Como já esbocei neste livro, vivemos hoje num mundo dramaticamente diverso daquele no qual se deram as primeiras experiências social-democratas e socialistas na Europa.

A derrota pelo estrangulamento econômico causado pela corrida armamentista e espacial da Guerra Fria, somado ao fracasso em se compatibilizar liberdade política e desenvolvimento econômico, condenou o socialismo real no imaginário popular.

Setores mais organizados de trabalhadores se transformaram em verdadeiras cooperativas capitalistas através dos fundos de pensão, tomando decisões de como investir suas economias para garantir suas aposentadorias. Esses trabalhadores acionistas remodelaram o cenário intrincado na luta de classes, criando um ambiente distinto daquele observado no século XIX nos países industrializados.

Por essa Karl Marx não esperava, e nem podia esperar, pois foi o entrechoque ideológico radicalizado entre o marxismo-leninismo revolucionário e o capitalismo liberal que produziu a síntese socialdemocrata.

E nesse ambiente, deu-se o surgimento de coletivos de trabalhadores como capitalistas, dado que um dos maiores acervos de capital disponível no mundo moderno são os fundos de pensão.

Estes tendem a administrar esses imensos ativos em bases estritamente profissionais, não nepotistas, e buscando, como um bom capitalista, o melhor ponto de equilíbrio entre rentabilidade e segurança em suas aplicações.

O neoliberalismo avançou sobre as barreiras comerciais e os Estados Nacionais para transformar os países em desenvolvimento em espaço vital para sua reprodução, criando, na prática, um neocolonialismo. Mas já na primeira década do século XXI esse consenso neocolonialista de abertura e desregulamentação da economia ruiu com a crise financeira de 2008, tornando o rótulo “neoliberal” rejeitado até por aqueles que defendem seu ideário. Aliás, gosto de brincar que a forma mais segura de identificar um neoliberal é dada pela acusação, feita por ele, de que o uso dessa palavra é fruto de “ignorância econômica”.

As constantes revoluções tecnológicas pelas quais o mundo vem passando e que se acentuaram a partir do meio dos anos 1980 deixaram, nos dias de hoje, nações inteiras três ou quatro gerações tecnológicas para trás. Na proporção que a economia digital avança, esse profundo abismo já está gerando tensões que com certeza produzirão mudanças sociopolíticas mesmo dentro de territórios nacionais. Por exemplo, no Vale do Silício, na Califórnia, um funcionário do Google não tem jornada fixa de trabalho, não tem salário fixo, é remunerado por um mero insight, uma mera inovação que imagine.

Não é raro que possa ficar milionário antes dos 25 anos, num ambiente de trabalho em que não faltam redes ou mesas de pingue-pongue, e que, ao descer para comer um lanche, seja atendido por um imigrante ilegal, obrigado a trabalhar doze horas por dia ganhando um salário miserável, e que provavelmente morrerá sem qualquer seguridade social. Se é assim em escala nacional, é mais do que ingênua: é criminosa a defesa de uma adesão passiva de uma nação a esse vanguardismo econômico que por média não conhecemos.

O avanço da ciência da computação nos colocou diante de sistemas de inteligência artificial e controle que ameaçam as liberdades individuais e a democracia. Nossos dados pessoais são capturados por programas supostamente gratuitos e vendidos com o objetivo de incentivar o consumo ou manipular as massas. Com a microeletrônica e a nanotecnologia, a espionagem atingiu níveis que tornam os antigos filmes de 007 divertidas comédias retrô.

A automação e a robótica estão dizimando milhões de empregos em ritmo acelerado e nos oferecem um horizonte próximo, de algumas décadas, de virtual extinção do trabalho, levando a uma concentração de poder inimaginável pelos detentores dos bens de produção, que, em breve, tenderão a se resumir a uma dúzia de gigantescas corporações. Só as tecnologias iminentes do 5G e da inteligência artificial garantem, ninguém duvide, que todo tipo de trabalho humano repetitivo será radicalmente substituído por máquinas e algoritmos. Um médico em Boston (ou em Xangai…) auxiliado por um algoritmo substituirá todos os médicos do mundo encarregados de emitir laudos sobre raio X, ressonância magnética ou tomografia computadorizada, assim como um software orientará robôs em intervenções cirúrgicas de complexidade intermediária. O que não dizer de motoristas de ônibus, balconistas ou serventes de pedreiro? Não nos planejarmos para essa iminência não é omissão, é um crime.

As redes sociais criaram um inédito processo de manipulação de massas que estamos somente começando a compreender, permitindo a empresas privadas um processamento gigantesco de informações, os metadados, e seu uso de forma totalmente independente e sem qualquer consideração ética ou controle social.

A globalização, nome nobilitante que deram ao neocolonialismo no fim do século XX, se valeu da revolução da informática e da internet para integrar o mundo inteiro numa gigantesca ciranda financeira sem lastro razoável na economia real, acelerando de forma imensa o fluxo de capitais.

Mas não só. Ao mesmo tempo, entregou o completo inverso de sua promessa de globalizar as condições de empreender, produzir ou buscar trabalho. A única coisa que de fato se generalizou foi a informação em tempo real, e essa informação estava predominantemente direcionada à disseminação e imposição do padrão de aspiração de consumo dos países ricos ao mundo todo.

As sociedades foram mergulhadas numa avalanche de imagens e mensagens tecnicamente desenvolvidas para disseminar essa aspiração e padrão incompatíveis com os limites econômicos e ecológicos das nações, assim como com a felicidade individual.

Como esbocei no início deste livro, deixamos de encontrar a felicidade em âmbito subjetivo, espiritual, como a busca de justiça social, a fruição estética da arte ou o amor romântico, para tentar fazê-lo no âmbito do mercado, que pergunta quanto de uma expectativa de consumo damos conta de praticar com a renda que temos.

Minha geração foi uma geração de insurgentes, que buscava a felicidade em bens espirituais, no domínio dos valores. No valor do sagrado também, mas igualmente no valor do prazer, do belo, da justiça, da compaixão. Acreditávamos que nossa felicidade seria encontrada na paixão, no romance, no amor, na música, queríamos o contato com o sagrado ou o saber, queríamos a revolução e um mundo melhor.

As novas gerações cresceram sob o estresse imenso do excesso de informações que vem pelas redes sociais, mídias e cinema, impregnadas de estímulos ao consumo e de propaganda. São massacradas dia e noite com imagens e símbolos que buscam seduzi-las, convencê-las a abandonar o mundo dos valores (daquilo que é um fim em si mesmo, e portanto satisfaz de fato) em busca do mundo das coisas (que no máximo são úteis para algo, e, como tal, são meios, não fins em si mesmas).

Hoje somos empurrados para entrar numa espiral de consumo: a criança no morro do Cantagalo, no Rio de Janeiro, sabe qual é o padrão de consumo ótimo nos países ricos, mas não tem renda nem para o consumo de subsistência em nosso país desigual e pobre. 

Se essa é sua referência de felicidade e sucesso, então ela aprende a acreditar que é infeliz e fracassada. Grande parte da produção não busca mais primariamente disponibilizar bens úteis, mas sim bens associados a símbolos de status. E status, em nosso tempo, não é mais fruto do saber ou do amor dos outros, mas da posse de produtos caros.

Por que outro motivo alguém pagaria R$70 mil numa bolsa Louis Vuitton senão por puro símbolo de status? Para carregar coisas, compra-se uma sacola de R$2. Então as pessoas passam a acreditar que são felizes caso possam satisfazer suas expectativas de consumo excitadas por essa superoferta. Isso gera numa perna a pirataria e, na outra, a violência. A pirataria em nosso tempo não é roubo de carga, mas roubo de marca. É a tentativa venial, porém ilegal, de produzir o símbolo desejado e possuir o bom, bonito e barato. Essa é outra raiz da violência urbana, que não pode ser explicada apenas pela pobreza. A cidade cearense de Salitre tem uma renda per capita de um quinto da média nacional e, no entanto, passa dois anos sem ter nenhum homicídio.

Na minha opinião, a raiz mais profunda da violência em nossa sociedade é o contraste entre a miséria e a opulência, vinculado às excitações das demandas de consumo. Mais ainda, as terríveis frustrações de se buscar a felicidade na posse de coisas, porque coisas não são fins, são meios para a felicidade.

Sempre haverá novos padrões de consumo e produtos a acessar para tornar infeliz aquele que os deseja e não os possui. Esse é nosso ambiente social e econômico atual. Se a esquerda fracassou, é porque não deu resposta adequada a ele. Como disse o ex-presidente do Uruguai José “Pepe” Mujica, “a esquerda falhou por criar consumidores e não cidadãos”. Por quê? 

O consenso neoliberal matou a esquerda tradicional 

Ao olhar hoje tanto para a direita liberal quanto para os tradicionais partidos social-democratas, a população do mundo democrático identifica a mesma prática globalista e neoliberal que tem piorado sua condição de vida há quarenta anos. Suas atuações no governo têm sido as de meros operadores do mesmo sistema. Além disso, ambos defendem hoje pautas liberais no campo do comportamento, o que torna ainda mais difícil a diferenciação entre eles.

A essência do consenso neoliberal é que o governo existe somente para administrar serviços públicos que não interessem à iniciativa privada, executar programas de renda mínima e operar para o capital financeiro, e que o Estado deve abrir mão de sua capacidade e papel de investimento e coordenação da economia.

Desesperada com a perda de renda, de perspectiva de futuro para seus filhos e de empregos para a tecnologia e a globalização, essa população, principalmente a europeia – que assiste ao progressivo desmonte de seu Estado de bem-estar social –, não vê mais na esquerda democrática, social-democrata, uma opção para defender sua nação e seu modo de vida da sanha do sistema financeiro internacional, agravada pelo estresse migratório produzido por suas guerras e pela luz ilusória de seu consumismo. 

Esse padrão de consumo, além de impossível, vai matar o planeta Terra, como o aquecimento global e as pandemias já estão mostrando.

Ao procurar opções, encontra nos remanescentes da velha esquerda revolucionária a promessa de um socialismo real que se mostrou autoritário e derrotado economicamente, portanto, sem apelo atual.

Alternativamente, encontra também uma esquerda forjada no ambiente pós-maio de 1968, que trocou a pauta econômica da luta de classes pelas pautas identitárias, e como resultado se afastou ainda mais dos anseios da classe trabalhadora.

É esse o cenário que acredito ter se tornado fecundo para a extrema direita. Da mesma forma que nos anos 1930 na Europa, ela ressurge no mundo todo prometendo um Estado forte e o retorno a um glorioso passado das tradições perdidas que teria sido roubado pela financeirização da economia e pela mudança nas tradições culturais impostas pela imigração em massa e pela revolução tecnológica. O que entrega, no entanto, é xenofobia e a ampliação da desigualdade social.

Aqueles que votaram em Trump e a favor do Brexit não rejeitaram a democracia ou o Estado de Direito Liberal: eles rejeitaram a globalização, o livre-comércio e a imigração. Diante de um mundo em crise, querem proteger seu país em primeiro lugar, seus empregos imediatamente.

Incrivelmente, o fenômeno de extrema direita brasileiro, Bolsonaro, difere dos outros fenômenos mundiais por querer também destruir o Estado e a indústria nacional, entregando o país de bandeja para os EUA. Na minha opinião, a ruína resultante de sua ação econômica provocará a rápida degradação de seu apoio popular.

A seguir, vou explorar outros três fatores que acredito contribuírem para o afastamento da esquerda da população mesmo no momento de maior crise do capitalismo desde 1929.

A herança do socialismo autoritário

Não é somente o histórico de experiências autoritárias na Ásia e no Leste Europeu, mas também outras ideias no arcabouço do “socialismo real” que causam atritos desnecessários à causa da igualdade social.

Há uma crença mal vulgarizada e distorcida, disseminada em grande parte da esquerda, de que tudo o que alguém é e pensa é determinado pela sociedade, o que gera consequências graves, como a dissolução da responsabilidade moral do indivíduo por suas escolhas e condição socio-econômica.

Entre um extremo que diz que o indivíduo é o único responsável por sua condição, não importando as condições sociais em que nasceu, e o outro que diz que o indivíduo não tem qualquer responsabilidade por sua condição atual existem muitas posições bem mais razoáveis.

Ao escolher o segundo extremo, muitos acabam, por exemplo, enfatizando excessivamente as justificações sociológicas para um crime, como se ele fosse única e exclusivamente culpa do ambiente social a que o indivíduo foi exposto. Ao ouvir esse discurso, a população que também cresceu no mesmo ambiente social, com as mesmas carências, e acorda todo dia às cinco da manhã para pegar um ônibus lotado para o trabalho fica indignada.

Isso acaba gerando a crença equivocada de que a defesa dos direitos humanos, que deveria ser uma bandeira universal, é a defesa de criminosos. A esquerda não pode ser complacente com o crime, nem no poder, nem na teoria, nem no discurso. Não pode alisar bandidos. Para combatermos duramente os crimes contra os direitos humanos, temos que combater duramente os crimes contra os “humanos direitos”, para usar o trocadilho maliciosamente popularizado pela direita.

Outro discurso nefasto que ouvimos muitas vezes da boca de supostos esquerdistas “raiz” é a denúncia da moralidade no discurso político. Em vez de defender a justiça, essas pessoas afirmam que se deve defender o interesse de classe. Ou seja, a luta para aqueles que engolem essa interpretação não é para construir uma sociedade justa, mas sim para fazer os interesses de uma classe prevalecerem sobre os interesses de outra.

Quando assume esse discurso, a esquerda perde o motor moral para lutar contra a superexploração e a superdesigualdade, caindo num pseudorrealismo discursivo totalmente apartado da moralidade da população. E quando ainda esses militantes relegam a moralidade cristã à condição de mera ideologia a serviço da “classe dominante”, perdem a força moral do cristianismo para criticar os excessos do capitalismo neoliberal: sua ganância, acumulação injusta, superexploração e egoísmo.

E assim esse erro pode ainda induzir a outro maior, que é a presença de militantes que têm preconceito contra a religião em nosso meio. Esses militantes podem assumir uma postura muito negativa contra o senso religioso, considerando-o mero meio de alienação e afastamento da luta política.

Mas a história está coalhada de exemplos contrários. Apenas no Brasil, independentemente de julgamentos sobre suas posições políticas, podemos citar o engajamento de dom Hélder Câmara, de Antônio Conselheiro, de Padre Cícero ou o papel histórico da CNBB. Gostaria de destacar aqui a figura de dom Aloísio Lorscheider, um homem santo que muito me influenciou na minha formação já como jovem na Pastoral Universitária. Muitas das resistências a regimes autoritários na história da humanidade foram lideradas por religiosos que não temiam por suas vidas, mas sim por suas almas.

Para citar dois exemplos, poderia lembrar o movimento de Direitos Civis nos EUA liderado pelo pastor batista Martin Luther King e a resistência católica na Polônia comunista.

A garantia de um Estado laico deve ser exercitada não para desrespeitar a devoção ao sagrado da maioria de nosso povo, mas, ao contrário, para garantir a mais ampla e generosa liberdade de culto e o respeito às diferenças e à tolerância inclusive aos que têm dificuldade de crer.

O ateísmo hostil é um imenso desserviço à causa da igualdade social. Não falo isso por ser eu mesmo um cristão. É só a realidade. Há poucos registros históricos de perseguição religiosa em regimes socialistas, mas denunciar politicamente a fé de mais de 80% da humanidade é um ataque frontal ao povo que acaba se refletindo contra a esquerda como um todo.

Isso é particularmente trágico no caso do Brasil, porque o cristianismo, nossa base religiosa e cultural, é flagrantemente uma religião de opção pelos pobres, que denuncia o acúmulo de riqueza, a vida material e o hedonismo da sociedade contemporânea. No campo prático, hoje, nas periferias do Brasil, muitas vezes desmoralizado o espaço comunitário pela descrença na política, resta ao nosso povo o refúgio de pastores e padres. Em minhas andanças, já ouvi de muitas mães que foram os pastores que lhes deram dinheiro para pagar o traficante e salvar seus filhos dependentes da morte certa. Não entender isso é de um elitismo tão inconsequente quanto o egoísmo de quem anda de carro blindado e de vidros escuros para não ver a realidade.

O abandono do horizonte nacional

Há outra ideia disseminada na esquerda que explica a incapacidade de esta liderar a oposição ao globalismo neoliberal ou ao domínio internacional do sistema financeiro. É sua defesa do unimundismo, denúncia do nacionalismo e do Estado-nação.

Segundo essa ideia, o nacionalismo é parte da ideologia da classe dominante, meramente um instrumento para justificar que burgueses mandem meninos para a guerra contra outros meninos e assim disputar mercados com outros burgueses. Ele seria um dos fatores de criação da sensação de coesão social e sentimento de unidade que serve para esconder a verdadeira divisão, que não seria entre nações, mas entre classes sociais. Para comunistas, por exemplo, o comunismo deveria ser internacional, assim como a classe trabalhadora seria uma só.

Para a esquerda europeia, a adoção desse discurso fazia todo o sentido histórico. Divididos entre dezenas de nações num espaço geográfico menor do que o território brasileiro, os trabalhadores europeus do início do século XIX eram enviados para matar trabalhadores de países vizinhos a fim de proteger os interesses coloniais dos Estados imperialistas europeus em terras distantes, onde, por sua vez, outros trabalhadores eram explorados até a morte.

Essa dominação ocorria de modo formal. As colônias na América, Ásia e África forneciam matéria-prima e mão de obra barata para as metrópoles europeias, recebendo em troca produtos manufaturados. Dentro da própria Europa alguns países lideravam o processo, dominando o sistema mercantil e depois industrial, sendo o exemplo mais evidente disso a Inglaterra.

Lutar contra o imperialismo então, para o trabalhador europeu, era lutar contra o nacionalismo em sua própria pátria imperialista. E para piorar, esse nacionalismo ainda vinha impregnado de ideias racistas e xenófobas para justificar sua violência e exploração.

Mas nos países periféricos essa condição se inverte totalmente. Lutar contra o imperialismo e a exploração econômica brutal requeria a afirmação da própria identidade nacional, seu direito de se autodeterminar, se industrializar e usufruir da própria riqueza produzida para viver de acordo com sua cultura. A denúncia do Estado-nação importada da Europa se tornava assim mais um instrumento do imperialismo.

Com o avanço do sistema financeiro e da industrialização no fim do século XIX, países centrais passaram a usar multinacionais para extrair excedentes dos países periféricos. Esse processo se acelerou com a revolução dos transportes e o advento da informática no século XX. Era difícil ver com clareza no século XIX como seria o projeto internacionalista do próprio capitalismo. Não temos mais essa desculpa.

Hoje, com o domínio econômico e político das grandes corporações multinacionais, o Estado-nação, que antes era um anteparo protetor do capitalista, passa a ser um dos últimos obstáculos à expansão sem limites de seu poder. Para as multinacionais, assim como para os especuladores financeiros, as fronteiras nacionais são um mero detalhe. Seu mercado potencial não é mais interno, mas o mundo inteiro. O caso atual do Estado brasileiro é extremo no mundo, mas não uma exceção. Ele está sequestrado pelos interesses privados da agiotagem nacional e serve hoje à transferência de renda de quem produz e trabalha para os bancos e rentistas. Mas ainda assim é o único anteparo entre o povo e seus predadores que pode, sob um governo decente, protegê-lo. O neoliberalismo nada mais foi que o instrumento ideológico fabricado pelo novo colonialismo para promover a destruição dos Estados-nação. Thatcher e Reagan começaram nos anos 1980 a implementar essa progressiva transferência de poder dos Estados para o sistema financeiro e as grandes corporações, impedindo que países como o Brasil se consolidassem de fato como uma economia soberana e alterassem a atual correlação de forças da economia mundial. Esse projeto chegou ao seu auge com a implantação do euro, a moeda única dos países da União Europeia, nos anos 1990, destruindo com um único golpe a moeda própria de vários dos Estados que outrora foram os mais poderosos do mundo e, com ela, seu principal instrumento de política econômica soberana.

As novas indústrias de alta tecnologia foram mantidas nos países centrais, enquanto indústrias menos rentáveis foram deslocadas para países de terceiro mundo. Com o choque de juros nos EUA e uma política mais restritiva de crédito do FMI, a industrialização de países periféricos que não tinham alta poupança interna ficou inviável. Só países com indústria e poupança interna forte sobreviveram a esse choque financeiro, como o Japão e a Coreia do Sul. Os países subdesenvolvidos, incluindo o

Brasil, iniciaram um forte processo de desindustrialização, como já foi abordado mais detalhadamente em capítulos anteriores. Os organismos internacionais (como o Banco Mundial e o FMI) perderam as funções de desenvolvimento que tinham no pós-guerra e se tornaram agentes do Consenso de Washington. Para ter acesso a crédito, países tinham que se desfazer de suas empresas estatais estratégicas, o Estado deveria perder sua capacidade de investimento mergulhado em políticas de austeridade, qualquer política industrial seria eliminada e a gestão das dívidas públicas passaria aos grandes bancos e fundos internacionais. Todos estes sediados, sem surpresa, nos países centrais.

A esquerda, principalmente a europeia, permaneceu perplexa diante dessa nova realidade, sem instrumentos teóricos ou políticos para reagir, enquanto o globalismo destruía economias e culturas locais e impunha a lógica especulativa do mercado financeiro internacional. Boa parte do povo europeu, desesperado por reação de sua classe política, se cansou de esperar dos partidos social-democratas qualquer postura distinta da rendição ideológica ao neoliberalismo, enquanto via o Estado de bem-estar social europeu ser aos poucos desmontado. Revoltado, viu somente a extrema direita assumir a luta contra o globalismo em defesa da economia nacional e de sua forma de vida, manipulando o fetiche da imigração.

Mas isso não aconteceu só na Europa. Ao contrário do que nossa imprensa quer fazer parecer, o fenômeno Donald Trump nos EUA não é somente resultado da xenofobia do norte-americano interiorano, mas também uma reação consciente aos efeitos da globalização na economia americana.

Com suas medidas protecionistas, Trump enterrou a hegemonia discursiva do livre-comércio e lembrou a todos a crua realidade de como os EUA sempre defenderam seus interesses nacionais. Somente no Brasil é que a extrema direita se afirma com um discurso patriota vazio e prega o aprofundamento do neoliberalismo e a dissolução da pátria com sua transformação em colônia ou protetorado. Faz isso sob o olhar omisso ou, pior, cúmplice e traidor, de alguns de nossos ex-oficiais militares superiores. É uma vergonha única no mundo. Inexprimível.

É preciso lembrar que o imperialismo não é exclusividade do capitalismo, o mesmo ocorreu na antiga Cortina de Ferro. A extinta URSS guardava para si a ponta do desenvolvimento industrial e tecnológico, enquanto países como Cuba exportavam cana-de-açúcar, motivo principal pelo qual permaneceram pobres até os dias de hoje. Esse, aliás, foi um dos motivos centrais para a ruptura dos russos com os chineses, nos anos 1970.

Resumindo, a denúncia do imperialismo e a defesa de Projeto Nacional no mundo subdesenvolvido são na verdade muito simples de entender.

Assim como há divisão de trabalho dentro de nossa própria sociedade, também há no mundo. Os trabalhos a serem realizados em nossa sociedade, por definição, não são iguais. Alguns são mais desgastantes, outros menos. Alguns geram maior riqueza, outros menos. Alguns são mais valorizados, outros menos.

Da mesma forma que as pessoas competem entre si para fazer os trabalhos menos desgastantes que gerem mais riqueza e valor, as nações competem entre si pelos mesmos motivos. Mas enquanto os meios de competição dentro de uma sociedade podem ser regulados pela lei, no mundo eles são regulados somente pela força.

Alguns países possuem sistemas produtivos complexos, com educação e pesquisa de ponta, indústrias de alta tecnologia e capacidade não só de produzir coisas que os outros países querem como também de criar produtos que o mundo vai querer amanhã. Outros países possuem sistemas produtivos simples, ocupando suas populações na produção de commodities e importando os produtos de alto valor agregado que os primeiros produzem. Usar a força financeira ou militar para manter os segundos na mesma condição é o imperialismo. O que se opõe a isso, nos países periféricos, é o nacionalismo moderno.

O fato que não podemos mais esquecer no Brasil é que nenhum país que se ocupa das atividades mais complexas e valorizadas quer dividir esse espaço. Vemos isso com clareza atualmente na disputa comercial entre os EUA de Trump e a China de Xi Jinping em torno da Huawei, a gigante emergente da indústria de tecnologia da informação e comunicação que ameaça a liderança norte-americana no setor.

Defender os interesses de sua própria nação não faz ninguém ser de esquerda ou de direita. Mas é o que define alguém como um patriota ou um apátrida. Entregar setores econômicos estratégicos para nosso desenvolvimento para a China não faz de você um comunista ou socialista, mas um traidor.

Prestar continência para a bandeira e os interesses imperialistas norte-americanos não faz de você um liberal ou conservador, mas um traidor.

O enfraquecimento das pautas universais

As lutas pelos direitos das minorias emergiram com força nos anos 1960 e se tornaram naturalmente integradas à esquerda internacional, que sempre lutou contra a opressão e a desigualdade de direitos e bens no gênero humano.

O PDT foi vanguarda dessa luta no Brasil. Desde seu primeiro documento, a “Carta de Lisboa”, de 1979, afirma como prioridade política a luta pelas minorias. Seu manifesto de fundação, de 1980, proclama como “direitos democráticos e sociais do povo brasileiro” o “direito de abominar e combater toda doutrina e práticas que discriminem brasileiros e demais habitantes do país, por suas ideias, crenças, sexo, idade, raça, aspecto físico, nacionalidade, classe social, ou muito especialmente, por

sua condição de pobreza; ou ainda, que conduzam ao desrespeito de sua dignidade ou que suprimam ou restrinjam seus direitos humanos e sociais”. [3] Mantendo uma abordagem universalista e socio-econômica das lutas das minorias, seu estatuto conclama a “lutar pela causa da mulher, do negro, do índio, dos jovens e dos idosos, sem qualquer forma de discriminação”. [4]

Mas essas não foram meras palavras jogadas no papel. Como efeito prático disso, para além da criação dos primeiros movimentos de direitos de minorias no Brasil, o PDT, entre outras coisas, elegeu nosso primeiro deputado federal índio, nosso primeiro senador negro, nosso primeiro governador negro, criminalizou o racismo e implantou a primeira Delegacia da Mulher.

Ficou claro tanto aqui quanto nos EUA o potencial mobilizador dos movimentos de direitos civis dos negros, mulheres e gays integrados à esquerda política. Como a esquerda tinha perdido espaço popular – no Brasil, com o preconceito de parte de seus militantes com o neopentecostalismo crescente e a adesão de parte de seus partidos ao consenso neoliberal – e aprofundado o fosso entre sua mensagem e prática e os excluídos da sociedade, passou a investir cada vez mais dessas pautas para tentar atingi-los.

Foi então que surgiu nos EUA uma abordagem teórica e prática para a luta dessas minorias que buscava mudar a feição das demandas e práticas de parte desses movimentos. De uma luta por direitos e condições materiais igualitárias, portanto universais, a Identity Politics, ou New Left, deixa de lutar para apagar as fronteiras de gênero, etnia, cor e orientação sexual e passa a lutar para acentuar essas fraturas e reafirmá-las. Faz isso por meio de uma fragmentária luta por poder e afirmação de identidades, exigindo que os direitos passem a ser distribuídos diferentemente de acordo com gênero, etnia e orientação sexual. Ao fazê-lo, busca a reparação por genuínos históricos de opressão, mas o faz através da divisão oficial da sociedade em vários grupos.

Partindo do fato de que nossas instituições muitas vezes perpetuam privilégios e opressões sob a falsa promessa de tratamento igualitário, os seguidores dessa abordagem não atribuem essa perpetuação predominantemente à concentração de renda, mas ao gênero, à cor da pele ou à orientação sexual. “Privilégio” é definido como a vantagem de ter nascido num gênero, etnia ou

orientação historicamente favorecidos, e “opressão”, definida como as limitações sofridas por ter nascido com uma identidade historicamente desfavorecida. Essa opressão e esse privilégio se exerceriam através da linguagem, da cultura, das instituições e do sistema econômico.

Setores da dita esquerda brasileira importaram essa abordagem norte-americana de forma completamente acrítica, ignorando as diferenças culturais entre nossos países, especialmente o perfil étnico das populações e seu grau de miscigenação. O PT, quando no poder, ao se ver sem margem para manter um discurso de esquerda diante da prostração ao ideário neoliberal e à concentração de renda no país, passou a explorar a generosidade do espírito solidário das pessoas altruístas e a dor dos, de fato, oprimidos. Com sua falta de visão e de projeto nacional, acabou por dar ainda mais centralidade discursiva e descontextualizada a essas pautas, e ao fazê-lo, ao longo do tempo, se enfraqueceu como força unificadora popular. Isso porque essa abordagem de luta pelos direitos das minorias baseada na acentuação das diferenças causa vários atritos entre os diversos grupos de identidade.

É absolutamente claro para quem conhece o Brasil com intimidade que nossas mazelas sociais têm definitivamente um corte étnico, de gênero e de idade. Por qualquer ângulo que se queira considerar: vítimas da violência, população carcerária, desigualdade de renda, citando três exemplos trágicos, tudo isso pesa muito mais fortemente sobre negros, caboclos, mulheres e jovens. Assim, a questão da identidade não é algo irrelevante no nosso debate, e, como ouvi em notável reflexão do professor Silvio Almeida, uma coisa é identidade, outra é identitarismo. O exemplo que ele citou foi o do Pelé. Para ele, Pelé foi essencial na afirmação da sua identidade, da sua autoestima, foi um fator motivacional para que superasse estigmas e preconceitos e se tornasse o vencedor que é. O simples fato de ver Pelé cortejado por reis e rainhas, sendo negro, foi um importante fator de construção da sua identidade.

Mas, continua ele, dando a mim uma preciosa lição, boa parte dos movimentos que lutam pela causa negra fala mal do Pelé porque não teria o atleta assumido um discurso de defesa dos negros. E isso seria um equívoco do identitarismo. Me parece que o identitarismo é um esforço respeitável, oriundo de um genuíno sentimento de alteridade e solidariedade por pessoas órfãs pelo enfraquecimento da esquerda tradicional, a partir da queda do Muro de Berlim, da falta de um manual que a muitos dava segurança de buscar superar, na luta de classes, a desigualdade.

Esse é um debate extremamente delicado, porque nossa solidariedade à causa de todas as minorias, de todos os perseguidos e injustiçados não nos dá nenhuma vontade de diminuir a energia ou a forma com que cada um entenda melhor lutar. Mas uma coisa eu posso afirmar aqui e agora: por mais relevantes que sejam, a soma dos interesses identitários não é igual ao interesse nacional.

Acredito que essa luta, na qual o PDT é pioneiro no Brasil, deve ser feita dentro dos marcos do universalismo e da busca essencial da esquerda por igualdade. Mais do que isso, deve ser feita dentro de um projeto nacional de desenvolvimento, pois não se fazem políticas públicas contra a discriminação sem emprego, renda e tributos para sustentá-las. No fim das contas, o que permite a qualquer grupo social afirmar sua forma de vida em qualquer sociedade é sua emancipação econômica. E também isso não se faz sem desenvolvimento econômico.

A CRISE DA ESQUERDA BRASILEIRA

Não parece problemática a ninguém a afirmação de que a esquerda brasileira vive uma crise profunda. Perdemos a hegemonia moral na sociedade, e isso num país que hoje é o décimo, ou, dependendo do índice, até o primeiro, país mais desigual do mundo. Não só perdemos a hegemonia moral como perdemos o governo para a extrema direita. E uma extrema direita tosca. Afirmar-se de esquerda no Brasil hoje se tornou um ônus eleitoral. A verdade doída é que a direita conseguiu imputar à esquerda brasileira uma série de estereótipos negativos, como os de que ser de esquerda é praticar assistencialismo e alimentar bancos, roubar e deixar roubar, parasitar o Estado, destruir a religiosidade e a cultura conservadora brasileiras.

Boa parte dessa responsabilidade se aplica a nós, que nos identificamos à esquerda do espectro político, já que não fomos capazes de vencer esse debate e essa guerra de símbolos. E, em grande parte, isso aconteceu porque reproduzimos, no Brasil, os erros que a esquerda cometeu internacionalmente. Incapazes de formular um projeto, desertamos da ideia da transformação das estruturas do país, engolimos o neoliberalismo com casca e tudo e cuidamos de tentar humanizar suas sequelas. Abandonamos a denúncia da exploração neocolonial no nosso discurso e na explicação da questão nacional, e nos afastamos da defesa de um Projeto Nacional. Até dos símbolos nacionais e das pautas nacionalistas muitos de nós passaram, na verdade, a se envergonhar. Não demos nenhuma resposta eficaz à emergência da questão da segurança pública, muito pelo contrário, continuamos a reproduzir uma atitude hostil contra a polícia que vinha do período da repressão da ditadura, e deixamos que nossa defesa dos direitos humanos fosse confundida com a defesa de bandidos.

Todos esses equívocos atingem a esquerda em sua maioria, com exceções pontuais de alguns partidos (o PDT, por exemplo, nunca abandonou a denúncia do imperialismo, o uso dos símbolos nacionais e a defesa do Estado-nação). Mas me parece evidente que a questão central na ruína da esquerda foi ter se tornado aos olhos da maioria da população indiscernível da direita. E isso não acontece no campo do discurso, que, pelos motivos que elenquei acima, tem nos distinguido para pior. Isso acontece no campo da prática. Porque no momento em que um partido de nosso campo alcança o Executivo, nos rende às mesmas práticas fisiológicas e clientelistas da direita e assume o consenso neoliberal, passando a administrar o rentismo nacional. Com isso, quando nosso povo olha para o PT, vê as mesmas práticas complacentes com a corrupção, por um lado, e globalistas e social-liberais, de outro, que têm mantido sua condição de vida estagnada há quarenta anos.

Aceitamos o falso debate em torno do socialismo real, praticamente extinto da face da Terra, e continuamos a deixá-lo esconder a questão imediata e fundamental de como lidar com o neoliberalismo real que devasta o nosso país há quase três décadas. Será que a maioria das pessoas que se declara de direita no Brasil aceita a estrutura econômica da sociedade brasileira atual? Será que o que elas querem é de fato a manutenção ou o agravamento da desigualdade no décimo país mais desigual do mundo?

Ainda mais agora, quando estudo da FGV/Ibre [5] confirma que a desigualdade disparou no Brasil a partir do ajuste neoliberal de Dilma e se agravou com a gestão Temer e o início do governo Bolsonaro. Provavelmente, neste momento estamos perto de ser o país mais desigual do mundo. [6] Você acha que, sob qualquer ponto de vista, cinco pessoas possuírem tanta riqueza quanto a metade mais pobre da população é uma coisa desejável ou justa? Quantos incentivos mais precisamos dar a esses cinco indivíduos para que eles, de forma egoísta, supostamente produzam bem-estar social? É preciso jogar toda a riqueza do país nas mãos de cinco pessoas? E os outros indivíduos, nunca terão sua chance de disputar oportunidades e construir suas histórias? Não somos capazes de ser empáticos o suficiente para fazer essas perguntas sinceramente às pessoas que se declaram de direita e levá-las a reflexão. A militância de ambos os lados está envenenada com a ideia de que só há más intenções do lado de lá. Mas adianto que, caso você ache que tal nível de concentração de renda é injusto ou mesmo ineficiente para a geração de riqueza, dificilmente está, de fato, à direita no espectro político brasileiro, em que há um esforço de décadas de identificação entre direita e neoliberalismo.

Para se ter uma ideia melhor desse absurdo, basta uma comparação com o modelo da direita brasileira, os EUA. Porque para transformar o Brasil num país como os EUA hoje seria preciso reformas de esquerda. Sim, na maioria dos aspectos, os EUA são um país que está à esquerda do oligarquismo brasileiro. O índice Gini de distribuição de renda nos EUA hoje está em 0,408, contra o escandaloso 0,625 que o Brasil atingiu em março de 2019 (quanto mais perto de zero, menos concentração de renda). Os EUA cobram um teto de 40% de imposto sobre heranças para grandes fortunas, imposto fundamental para diminuir essa concentração a longo prazo; no Brasil o teto é 8%. Eles aumentaram o imposto sobre lucros e dividendos para pessoas físicas na crise econômica de 2008, enquanto o Brasil é um dos dois únicos países do mundo que nem sequer cobram esse imposto. Também os EUA estão muito longe do neoliberalismo tresloucado da parte antinacional da nossa direita. O Estado lá é maior do que o brasileiro, tendo 14,6% da população empregada no serviço público, contra 11,1% daqui. Eles são conhecidos como os maiores emissores de moeda do mundo e os maiores compradores estatais com leis de proteção à indústria local. Contam com leis de mídia, bancárias e industriais que impedem a concentração de renda e protegem decididamente suas empresas, indústrias e agricultura, a maior do mundo, como vimos agora na guerra comercial contra a China. O resultado das políticas protecionistas de Trump estão aí: nos EUA, a taxa de desemprego é atualmente a mais baixa em meio século, de apenas 3,6%. [7] Entre as sociedades ricas do mundo, a sociedade americana é a mais desigual, e a desigualdade está aumentando. Por isso não se trata aqui de qualquer elogio, mas de uma evidência prática do egoísmo e selvageria de parte da elite brasileira, e da prostração ideológica em que caiu nossa esquerda antiga, que quando teve oportunidade não mexeu em nenhuma das estruturas sociais.

A direita brasileira diz querer ser como os EUA, mas não quer fazer sequer como os EUA. Ao mesmo tempo, prega contra um risco imaginário de virarmos uma Cuba. Como isso é possível? Mais: como é possível que tenhamos sido tão incompetentes em rechaçar uma narrativa tão delirante? Será que o neoliberalismo, que nos intoxicou a partir dos anos 1980 e nos transformou do país continental que mais cresceu no século XX neste país estagnado e depressivo, é realmente menos fracassado do que o socialismo cubano, que garante a uma ilha isolada – a despeito do bloqueio e de todos os seus problemas políticos e econômicos – saúde e educação universais e de qualidade e IDH maior que o nosso?

Não é possível continuar sofrendo um apagão narrativo tão grande diante de um cenário desses. Precisamos mudar, e, se você chegou até aqui, sabe muito bem disso. 

Procurando entender a crise do PT 

O PT foi a seu tempo uma incrível construção social, um partido imaginado por intelectuais paulistas, estimulado pelos setores progressistas da Igreja, que se fundou no meio da classe trabalhadora e virou uma das mais instigantes novidades da redemocratização. Sempre olhei para o PT com um misto de admiração e questionamento. Admiração por essa origem, e questionamento porque nunca pude conhecer um projeto para o país do lulopetismo, além de achá-lo excessivamente vinculado a uma única personalidade. Ao atingir o Executivo, essa contradição se revelou, e de sua experiência pode-se dizer que foi uma grande frustração sob o ponto de vista das mudanças estruturais de que o país precisava e pelas quais pedia, e que se evitou até mesmo tentar.

Para chegar ao Executivo, o PT transformou seu discurso de esquerda num moralismo udenista [8] rasteiro e vazio de propostas. Uma vez nele, reduziu seu discurso a um personalismo messiânico despolitizante. Para governar sem sobressaltos, escondeu do horizonte nacional a questão da dependência e da luta de classes pela apropriação do orçamento público. No poder, tentou cometer o “crime perfeito”: tentou cooptar para o governismo todas as expressões de organização da sociedade civil – dos estudantes, sindicatos, profissionais liberais –, amarrando-os no aparelho do Estado com cargos, órgãos ou financiamento, até destruir em grande extensão sua representatividade e enraizamento social; e anestesiou o antagonismo social com políticas compensatórias que fazem parte do receituário neoliberal e do Consenso de Washington, apostando numa grande conciliação subornada em que a quase totalidade dos recursos que emergiram do boom das commodities ia para os ricos através do rentismo e as migalhas para os pobres com o Bolsa Família (que não onera nem 0,5% do orçamento).

Essa política acabou com o PT do ABC em seu nascedouro. Apesar de ainda contar com milhares de valorosos militantes e quadros políticos extremamente sérios e capazes, o PT se dobrou a um sistema personalista que obedece a todas as vontades de seu líder e a uma burocracia que luta pelo único objetivo de sobreviver. Suas bases em grande parte se perderam. A classe média moralista que antes via no PT um instrumento de moralização da política foi para a oposição, o sindicalismo ligado ao PT se tornou minoria da minoria no movimento sindical e grande parte de seus movimentos sociais passou a gravitar em torno do PSOL.

E, também, não posso aqui deixar de oferecer uma síntese sobre o fracasso que foi o PT como suposto governo de esquerda. Temos que reconhecer que houve conquistas e programas importantes no período. Volto a citar o aumento real do salário mínimo, a universalização do Bolsa Família e a consequente eliminação temporária da miséria absoluta no país. Obras como a transposição do rio São Francisco e hidrelétricas foram iniciadas, o investimento no pré-sal e programas como o Luz para Todos, entre outros, mudaram a realidade de milhões de brasileiros do interior, particularmente os nordestinos. Foi executada uma política de expansão do sistema de ensino superior público. Políticas industriais setoriais e pontuais foram realizadas, como a da cadeia da indústria naval (já colapsada em decorrência dos escândalos de corrupção). A classe média do Sul e do Sudeste, que no cômputo geral sofreu com uma estagnação de renda severa na era PT, geralmente não compreende a gratidão do povo nordestino a esse partido. Mas a verdade que tem que ser explicada aqui é que a vida no Nordeste, ao contrário do resto do país, melhorou no governo do PT, quando essa região cresceu em ritmo mais acelerado que a média nacional. 

Mas o balanço geral não é só esse. Foram treze anos e meio de poder servindo à banca e ao Consenso de Washington, mantendo o tripé macroeconômico e os juros reais mais altos do mundo herdados do Governo FHC (com curtos períodos de segundo ou terceiro lugar). Treze anos e meio nos quais a imagem de nossas estatais foi jogada na lama com a cooptação de políticos corruptos através do loteamento fisiológico que era chamado pelo PT de “genialidade política” e “presidencialismo de coalizão”. Expressão cínica criada por FHC para justificar a mesma prática fisiológica e corrupta. Treze anos e meio de populismo cambial e creditício sem uma política industrial sólida, capaz de democratizar a oferta, criando a ilusão no povo brasileiro de uma melhora permanente no nível de vida que, hoje, desapareceu. Sem reverter nosso processo de desindustrialização, sem enfrentar os interesses que querem nos manter um país agrícola. Treze anos e meio sem sequer tentar uma revolução educacional, uma reforma política, uma reforma tributária, nem mesmo a volta da alíquota de 35% no IR que eu havia criado para os mais ricos ou a cobrança dos lucros e dividendos que eu também cobrei como ministro de Itamar Franco. Nem quando Lula contava com mais de 80% de aprovação, ou seja: não há prova maior de que nunca quiseram de fato fazê-las. Treze anos e meio.

Por fim, o mais grave. Quando tudo isso começava a ser questionado, insistiram com um segundo mandato para Dilma, que nos prometeu uma “guinada à esquerda” na campanha, uma correção de rumos. A correção de rumos veio no que se tornou o maior estelionato eleitoral que já pude presenciar. Vamos falar com todas as letras: eu, você, todos os que votaram em Dilma em 2014 fomos enganados. Fomos feitos de palhaços. Obrigada ou não por Lula, Dilma trouxe o economista da escola de Chicago, Joaquim Levy, para o governo mal fechadas as urnas, numa tentativa de recomposição com o rentismo nacional. Com o Brasil em recessão, crise política e setores inteiros da indústria paralisados pela Lava Jato, como já descrevi anteriormente, o PT cortou investimentos e voltou a praticar os maiores juros reais do mundo. É preciso repetir sempre o resultado disso: colapso. O PT levou o país ao colapso com um ajuste neoliberal. Aumentou em 21% a dívida pública em apenas um ano, 2015. Comprometeu 8,4% do PIB nacional em pagamento de juros, fazendo o Brasil pagar, como já foi dito neste livro, R$501,8 bilhões em um único ano, o maior volume de transferência de renda do pobre ao rico da história brasileira. [9]

Na sabedoria popular do sertão do Nordeste, de onde eu venho, há um ditado que diz: “Quem dá e toma passa por ladrão”. Com isso, as pessoas querem valorizar a crença ética de que uma doação não deveria ser reversível. Pois bem. Para quem é ligado na alma do povo, isso é o que explica a frustração de grandes maiorias populares no Brasil com a prática do PT. O PT deu, o PT tomou. E o esforço da burocracia petista atual de apagar o período Dilma e destacar o período Lula colide com o testemunho de pelo menos 40 milhões de pessoas que ascenderam socialmente com Lula e voltaram ao desemprego, à humilhação e ao nome sujo no SPC com Dilma, do mesmo partido.

Estas reflexões não pretendem mexer em feridas do passado ainda muito recente. Querem, isso sim, construir esperança de solução para o futuro! Mas quem não entende de onde vem, não sabe para onde vai. Se não entendermos essas verdades históricas insofismáveis, estaremos condenados a repetir como tragédia esse resultado chocante a que chegamos com o Governo mortal para nossa nação de Bolsonaro. Não duvidem: o baronato brasileiro já está gestando mais do mesmo numa espécie de bolsonarismo sem a boçalidade tosca de Bolsonaro. Se forem bem-sucedidos, será o fim do Brasil como nação minimamente soberana.

Reflitamos sobre os números e as realidades que descrevo. Não caiam na armadilha para os críticos ao lulopetismo que os fanáticos petistas colocam. Não tentem matar o carteiro para que não leiam a carta. Até porque isso não é mais possível. A carta já foi lida por pelo menos 100 milhões de brasileiros que hoje são obrigados a viver, em média, com R$413 por mês. Precisamos de outro caminho, todo o campo progressista sabe disso. Eu vou oferecer minhas ideias de como e para onde mudar. Se estou no caminho certo ou não, cabe a vocês julgarem. Que o PT está e estava errado, parece que a história e o povo brasileiro já julgaram.

APONTAMENTOS PARA UMA NOVA PRÁTICA

Para onde ir? A experiência é um farol voltado para trás, dizia o médico e escritor mineiro Pedro Nava. Aprender com nossos erros é importante para não os repetirmos, mas não nos diz para onde ir. É mais do que natural que um jovem – ao olhar o cenário perigoso e obscuro que temos pela frente, sem qualquer guia do que fazer num mundo modificado no qual nenhum ser humano jamais viveu – entre num estado de desespero e depressão. Esperar o apocalipse, no entanto, é tão natural quanto ingênuo. Não deveríamos ter a pretensão de que sabemos exatamente para onde o mundo está indo, porque não sabemos. A forma mais eficiente de adivinhar o futuro é tomá-lo em nossas mãos e construí-lo.

Remoer indefinidamente fracassos do campo progressista numa autocrítica infinita não nos levará longe, mesmo porque, tanto no Brasil quanto no mundo, o neoliberalismo é um fracasso muito maior. Os governos progressistas na América Latina, por exemplo, trouxeram longos períodos de crescimento depois do desastre do primeiro ciclo neoliberal no continente. Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Equador, Uruguai e Venezuela experimentaram uma era de crescimento na primeira década do século. Aqueles que persistiram com políticas desenvolvimentistas permanecem crescendo até hoje, como Bolívia e Uruguai. Quem retornou às políticas neoliberais estritas, como Argentina e Brasil, soçobrou. Quem falhou em diversificar a economia e se aprofundou no intervencionismo, como a Venezuela, idem.

Quero então neste item chamar a atenção para algumas pautas e atitudes que creio serem fundamentais para o campo progressista do século XXI, sem com isso ter a pretensão de apresentar nenhum corpo desenvolvido de ideias. A pretensão aqui é ajudar a fomentar a discussão necessária em nosso campo político. 

Para começar a construir a nossa ação futura devemos partir munidos das melhores experiências disponíveis. Podemos não ter todas as respostas em nosso passado, mas é prudente partirmos das que temos, até para ter certeza de que outro mundo é possível. E onde o campo progressista foi bem-sucedido no mundo? Sim, na Europa. A Europa atual é fruto da social-democracia, que, diante da competição com o socialismo soviético, criou a maior e mais eficiente rede de proteção social, educação e saúde públicas que o mundo jamais tinha conhecido. Alguns companheiros poderiam me questionar lembrando que a riqueza dos países europeus também é fruto de séculos de colonialismo, e que o Estado de bem-estar social europeu é o resultado de várias guerras e revoluções internas e do risco do comunismo que não existe mais. Então sou obrigado a me lembrar dos cinco países mais felizes do mundo, sem desconhecer que há muita verdade nesse argumento. 

As melhores sociedades para se viver atualmente 

Há um grande consenso de que as sociedades com mais alto nível de vida do mundo hoje estão na Escandinávia. Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia; esses países vencem seguidamente todos os índices internacionais de desenvolvimento humano, felicidade e educação.

Em 2019, no Relatório Mundial de Felicidade [10] publicado pela ONU, a Finlândia, o menos rico dos países escandinavos (muito mais pobre do que os EUA), foi considerado o país mais feliz do mundo (e também está entre as primeiras posições do Pisa). A seguir vêm todos os outros países escandinavos, que obtiveram altos índices de expectativa de vida, saúde, renda, assistência social, liberdade, confiança e generosidade.

Como citei antes, há uma narrativa na esquerda que diz que o Estado do bem-estar social europeu é fruto de anos de saque colonialista. Outra história correlata, dessa vez da direita, é a de que só foi possível construir esse Estado de bem-estar social depois que enriqueceram com o liberalismo. As duas histórias são totalmente falsas no caso da Escandinávia. Como se não bastasse, assistimos hoje à construção, na China, do maior Estado de bem-estar social que já existiu, sem os benefícios prévios do colonialismo e sem que antes tenha havido enriquecimento com o liberalismo econômico, que nunca teve lugar lá ou na Escandinávia.

Foi em 1913 que a Suécia adotou os rudimentos de seu Estado de bem-estar social, quando sua renda per capita era cerca de um terço do que é a brasileira hoje. Como são então essas sociedades? Estado forte, investidor e regulador da economia e do sistema financeiro, média de um terço da população ocupada no Estado, que produz saúde, educação, segurança, previdência, assistência e transporte para todos, em troca de uma carga tributária que varia entre 40% e 50%, juros simbólicos, com baixíssimos índices de desigualdade, tributação progressiva e jornada de trabalho em queda. Vamos partir dessas pistas.

Ampliar e proteger a democracia

A tecnologia da informação atual cria novas formas de interação e amplifica o potencial da democracia direta. A gestão dos serviços públicos, por exemplo, deve ser modernizada e integrada a aplicativos que facilitem sua avaliação, fiscalização e redesenho, generalizando os mecanismos de e-government.

Consultas populares gerais ou referentes a grupos específicos se tornam tecnologicamente simples, passando a depender somente da decisão política quanto à frequência de suas utilizações. Mas não podemos nos iludir quanto ao tamanho da ameaça à democracia que esses avanços tecnológicos também representam, nos obrigando a novas ações para salvá-la. O mundo vem perdendo a fé na democracia representativa bem quando estamos, pela primeira vez na história da humanidade, realmente vulneráveis a uma forma de controle que pode se estender, graças à tecnologia da informação, até a nossa vida privada.

Há uma sensação difusa de que tudo está indo para um futuro sombrio, o cinema e a TV são invadidos por várias distopias todo ano, como a série Black Mirror, sobre o impacto da tecnologia do futuro. Essa sensação e esse espírito da época estão diretamente ligados ao vertiginoso avanço da tecnologia da informação que a esmagadora maioria da população não tem condições de acompanhar.

A classe política, eu incluído, é atropelada pelas novas tecnologias assim como os eleitores, particularmente pela manipulação dos sentimentos do eleitorado via redes sociais, algo que teve papel relevante nos resultados eleitorais do Brexit, de Trump e da eleição presidencial brasileira, [11] em 2018 e até agora não apurado. E isso porque ainda não vimos entrar em ação as formas mais avançadas de inteligência artificial.

A liberdade individual está sucumbindo a uma invasão de privacidade sem precedentes que só tende a piorar com o avanço e a generalização da tecnologia. As pessoas comuns vão se sentindo a cada dia mais irrelevantes num mundo em que a inteligência artificial vai tomando seus empregos e os algoritmos de rede manipulam sua opinião e sentimentos, condicionando o que elas veem.

A necessidade que os seres humanos têm de pertencer a uma comunidade e interagir está sendo explorada nas redes sociais e aplicativos de celular, que, para serem instalados, obrigam os usuários a entregar todos os seus dados. Essas corporações, que pelo seu tamanho já são ao mesmo tempo privadas e governamentais, organizaram esses dados e criaram algoritmos para seu uso como meio de manipulação e controle social, como vimos no escândalo da Cambridge Analytica, em 2018. [12]

Parte da força atual do discurso reacionário, da volta a um passado mítico de riqueza e segurança que nunca existiu, pode vir de um desejo inconsciente de se livrar dessas mudanças ameaçadoras. Bolsonaro e Trump são em parte resultado tanto dessa manipulação quanto desse desejo. Mas não há como voltar atrás nem na vida nem na história, ou fugir do progresso tecnológico. Temos que olhar com coragem para o futuro e encontrar novas formas de viver com os avanços tecnológicos, como um dia lidamos com a energia elétrica ou nuclear.

O progressismo do século XXI não pode fugir desse que provavelmente será o seu desafio central. Regular o poder disruptivo das novas tecnologias da informática (e biotecnologia) deve ser prioridade na agenda política. As revoluções na tecnologia da informação e na biotecnologia ainda estão somente começando, e temos que buscar garantir que elas venham para o benefício de toda a humanidade. Não podemos permitir que os governos ou as corporações fiquem de posse de sistemas de vigilância absolutos sobre nossas vidas. Devemos criar e pôr em prática legislações, assim como órgãos de fiscalização devidamente equipados e empoderados, que impeçam os algoritmos de big data de concentrar o controle e a informação num único centro e usar esses dados para manipular a população. [13]

Essa concentração pode eliminar de uma só vez os dois valores políticos mais caros do Ocidente: a liberdade e a igualdade. A liberdade, por controlarem todas as informações sobre nós. A igualdade, por concentrarem todo poder e riqueza humanos nas mãos de uma elite mínima, que teria acesso a tecnologia inimaginável, enquanto a massa da humanidade sobreviveria de benefícios de renda mínima.

Para evitar isso temos que regulamentar a propriedade desses dados e criar uma verdadeira democracia digital. Ou a democracia regula esses dados, ou o uso desses dados acabará com a democracia. O proprietário dos dados sobre seus interesses, seu DNA e sua vida deve ser você. Podemos fazer a tecnologia trabalhar a nosso favor ou vamos perder o controle sobre nossa vida. A tecnologia da informação pode estar a serviço da educação e a biotecnologia a serviço da saúde. Mas para isso temos que democratizar a posse desses dados, e a corrida por eles já está em curso. As grandes corporações estão muito na frente. Precisamos agir agora. Talvez essa seja a questão política mais importante de nosso tempo.

Defender os Estados-nação

Precisamos voltar a defender o Estado-nação soberano como uma das últimas forças ao nosso dispor para enfrentar a ditadura global do sistema financeiro e a ascensão das corporações da informação e sua acumulação de dados. O desenvolvimento de uma nação nunca se deu sem a proteção estratégica de seu mercado interno. Foram sempre políticas nacional-desenvolvimentistas que conseguiram criar um parque industrial contra uma indústria já desenvolvida em outros países. E isso continua a ser assim hoje na Ásia. Tanto o neoliberalismo quanto o marxismo defendem narrativas unimundistas, anseiam por um governo mundial. O neoliberalismo, para transferir todo o poder às grandes corporações e sistema financeiro. O marxismo porque considera que a classe trabalhadora é uma só, internacional, e deve apagar as falsas fronteiras entre as nações.

Mas considero que a defesa do Estado-nação é uma extensão da defesa do indivíduo. Em tempos de tecnologia potencialmente opressiva, se torna cada vez mais necessário transferir o máximo de poder aos indivíduos. O que não for possível, às suas comunidades, o que não for possível, delas a suas cidades, e, por fim, a seus Estados-nação que, como entes soberanos, resguardando ao máximo a autodeterminação daquela cultura nacional, negociem um equilíbrio de poder num concerto de nações. 

Distribuir ao máximo o poder sempre foi a forma mais eficaz de proteger a liberdade. Defender o Estado-nação é mais do que defender o direito de se desenvolver e produzir tudo o que se é capaz. É a defesa do sentimento de família estendido a um povo inteiro. É a defesa dos interesses de nosso povo antes do interesse de outros povos, assim como defendemos a comida de nossos filhos antes da nossa, porque se não cuidarmos antes de nosso próprio povo ou de nossos filhos ninguém cuidará por nós. É a defesa de um povo que compartilha uma parte do globo terrestre e quer se organizar de acordo com suas próprias crenças, valores e interesses, sua própria cultura.

Defender o Estado-nação é defender os aprendizados de nossa própria história, das instituições que construímos, das lutas e vitórias de nosso povo. É defender nossa exuberante cultura, que é um sucesso também fora daqui. É defender que possamos construir uma civilização única, “original”, como dizia Darcy Ribeiro, “uma civilização tropical, mestiça, orgulhosa de si mesma”.

Defender o Estado-nação, nosso desenvolvimento, nossa autodeterminação, nossa cultura e forma de vida é também defender que as Forças Armadas não sejam forças desarmadas incapazes de proteger a integridade de nosso território e riquezas. É fato que os novos desafios que a humanidade vai enfrentar no campo do trabalho e do emprego e no campo da tecnologia da informação vão requerer cooperação internacional. Mas certamente não conseguiremos mais liberdade nos rendendo a um governo mundial na fachada, e que na prática seria o governo de uma ou poucas nações mais poderosas. É só olhar para a grave e anacrônica estruturação da ONU hoje.

Se esse conjunto superior de valores não for tão simples de ser entendido, lembro que as condições de empreender, de produzir, de trabalhar são cada vez mais nacionais e chamo a atenção para três variáveis muito básicas: a personalidade e o custo do capital, o nível de sofisticação tecnológica e a capacidade de alcançar escala. Essas variáveis não são globais. Enquanto um japonês, um europeu ou um norte-americano se financiam com juros próximos de zero, um comerciante brasileiro desconta uma duplicata a 40% ao ano. A sofisticação tecnológica de ponta é um domínio restrito a muitos poucos países, e o Brasil não participa de nenhum desses domínios. Uma megaempresa chinesa, por exemplo, pode produzir 4 milhões de calças jeans em um único ano. Desse modo, é mais barato produzir uma calça jeans lá do que na Feira da Sulanca de Caruaru, onde a agenda neoliberal já é praticada em seu regime extremo: não há regras trabalhistas, encargos previdenciários nem tributação. As lutas do século XXI contra o autoritarismo e a desigualdade não poderão ser travadas sem o Estado-nação. 

Proteger o trabalhador, não o trabalho 

Em vez de previsões apocalípticas, gostaria de manifestar humildemente que não ousaria prever como estará o mercado de trabalho daqui a vinte anos. Ao contrário de todas as previsões passadas, a taxa de desemprego nos países ricos encontra-se

no nível mais baixo das últimas quatro décadas [14] (o que só indica mais uma vez o fracasso retumbante do Brasil). Não há nada de inexorável no futuro, e volto a dizer que a melhor maneira de o prever é construí-lo. Parece evidente que o avanço da tecnologia da informação e da robótica vai eliminar a maior parte dos empregos que existem hoje, isso é apenas uma questão de tempo. O que não podemos ter certeza é se aparecerão outros empregos diferentes como consequência dessas tecnologias, como aconteceu em outras revoluções tecnológicas.

Pode ser que, com o avanço da inteligência artificial, isso não se repita. No entanto, o desespero com isso é absurdo. Devemos incentivar o desaparecimento de tipos de trabalho que não são mais necessários ou em que a máquina seja mais produtiva que o ser humano. O que não pode desaparecer são os trabalhadores. Trabalhar cada vez menos é o processo de concretização do sonho da humanidade por libertação das necessidades materiais. O problema não é a diminuição das horas de trabalho, mas quem está se

apropriando desses ganhos de produtividade. A proteção da renda e do trabalho no futuro tem uma solução muito clara, embora difícil politicamente. Para nos adaptarmos às mudanças rápidas do mercado temos que nos educar, mas quando a automação e a informática alcançarem níveis incontornáveis, esse ganho de produtividade tem que vir junto com a diminuição da jornada de trabalho que é permitida por lei.

Hoje a Suécia já experimenta o turno único sem intervalo de seis horas diárias. São essas alterações que deverão ser bandeira progressista pelos anos vindouros para evitar tanto enormes contingentes de desempregados quanto a concentração da riqueza nas grandes corporações, gerada pela automação e informatização. 

Igualmente, o progressismo do século XXI deveria defender a iniciativa privada e o microempreendedor do poder sem limites dos grandes conglomerados e corporações. Da mesma forma, deveríamos defender a democratização e a generalização da propriedade privada, e não sua posse pelo Estado, porque hoje vivemos num mundo em que cidadãos em suas casas podem ser cada vez mais proprietários de bens de produção. Essa também é uma revolução que nossa sociedade está começando a experimentar e que acaba não com o trabalho, mas com os empregos. Em vez da oposição à propriedade privada de alguns bens de produção, devemos lutar é por sua universalização.

Apesar de parecer fantasioso, já vemos acontecer isso no mundo em setores como a energia elétrica (através da produção de energia solar em casa e conectada à rede pública de distribuição) e com as impressoras 3D. Setores inteiros da economia desapareceram e foram substituídos por softwares em nossos computadores pessoais. Temos hoje verdadeiros estúdios de música, vídeo e editoras dentro de casa. Está próximo o dia em que boa parte das atividades econômicas poderá ser desempenhada assim ou em cooperativas locais.

Temos que incentivar o desejo dos cidadãos por produzir seus próprios bens e a formação dessas cooperativas com a necessária flexibilização das políticas de patentes para dinamizar essa nova modalidade de organização econômica. Não devemos temer imediatamente o fim do trabalho, mesmo porque ele dificilmente acontecerá no espaço de nossa vida, mas sim a concentração dos bens de produção e automação. A diminuição da necessidade de trabalho é algo a ser comemorado, porque nos dá a possibilidade de viver uma vida mais plena, dedicada aos valores espirituais que nos são caros. O que não devemos comemorar ou aceitar é a diminuição do trabalhador.

Para aproveitar o salto dos próximos anos precisamos de uma revolução educacional que crie uma educação permanente, contínua, uma cultura voltada à economia do conhecimento, como a definiu Mangabeira Unger, [15] mas com atenção à saúde mental do trabalhador. Porque pode até ser possível criar indefinidamente novos empregos e reeducar os trabalhadores desempregados para se capacitarem a exercer uma nova profissão, ou, ainda, a utilizar novas tecnologias ou a organizar a atividade produtiva de novas formas. Mas também pode ser que, num futuro não muito distante, essas mudanças estejam num ritmo tão acelerado que o estresse causado por tamanha instabilidade não seja suportado pelo ser humano comum. E certamente não seria desejável a naturalização de uma vida assim.

Essa reflexão nos põe diante da agenda do século XXI, mas em todo mal alguma coisa boa há, diz também a sabedoria popular. O extenso retardo brasileiro nos permite falar de imposto e renda ainda pelos moldes tradicionais, ainda pela execução de uma agenda retardatária do século XX e até do XIX. Há uma imensa fronteira de empregos para o Brasil como há a muito raros países, em função de nossas especificidades. A agenda do século XIX não realizada: uma reforma agrária moderna que ocupe o campo em outras bases tecnológicas e em outras formas de propriedade. A agenda do século XX: a infraestrutura para executar mais de 24 mil obras paradas, 14 milhões de pessoas sem um teto para morar, uma rede de logística, ferrovias e também o emprego industrial. É incalculável o efeito de geração de emprego, aos milhões, do investimento nos setores já mencionados aqui (defesa, petróleo e gás, saúde e agronegócio). Nada disso acontecerá pelo espontaneísmo individualista do neoliberalismo ou sua pior mistificação: a de que seremos salvos de nossa tragédia econômica pelo capital estrangeiro.

Em suma, além da revolução educacional, precisamos, para nos preparar para as mudanças das próximas décadas, voltar a crescer, e, quando chegarmos ao estágio de produção almejado por nossa sociedade e a agenda retardatária começar a se esgotar, diminuir a jornada de trabalho na medida dos ganhos de produtividade. Mas isso, caro leitor, seria o melhor dos cenários. Seria se tudo desse certo. A perspectiva de automação generalizada nas próximas duas décadas elimina o papel antes concedido pelo projeto neoliberal às economias periféricas perdedoras na corrida da modernização.

No passado, o trabalho barato, não qualificado e sem direitos serviu à divisão econômica global, como descrevi num item anterior. Mesmo que estivéssemos em outro ciclo tecnológico, poderíamos esperar chegar lá com um projeto nacional claro. Mas agora, com a automação generalizada, o Brasil não teria como oferecer nem sequer trabalho escravo como troca econômica. O que faremos quando, mantido nosso povo na ignorância, a mão de obra barata e não qualificada sequer servir para alguma coisa? Como distribuiremos renda mínima se não tivermos renda nacional alguma? Você, jovem, que quer um futuro, precisa entender uma coisa: hoje, agora, é projeto nacional ou morte.

Desenvolvimento para salvar da miséria

Consumismo e excesso de bens materiais não trazem felicidade, mas a falta de bens necessários para uma vida decente traz infelicidade, dizem tanto a sabedoria popular quanto pesquisas recentes em psicologia. E o principal objetivo do Estado e de um governo é promover a felicidade de seus cidadãos. Não superaremos a miséria e a pobreza sem desenvolvimento. Como já mostrei em números, ainda nos falta muita riqueza para atingir o nível de vida dos países europeus. Precisamos crescer, produzir mais. Um progressismo renovado deve defender estratégias de desenvolvimento junto a estratégias distributivas, pois distribuir a miséria nunca foi bom negócio e sempre gerou resistências violentas. É muito mais fácil promover a distribuição de renda em períodos de crescimento econômico em que todos estão ganhando, é claro, fazendo os pobres melhorarem sua renda mais que os ricos. O oposto do que vimos acontecer nos últimos vinte anos no Brasil, em que os pobres melhoraram pouco, mas os ricos enriqueceram muito.

E assim como olhamos para a Escandinávia para encontrar pistas do que queremos ser, devemos olhar para a Ásia para encontrar pistas de como crescer. E é o que já fiz neste livro. O centro político desenvolvido é a Europa. O centro político em desenvolvimento é a Ásia. Com livre-iniciativa, mas sem o livre mercado, com rígido controle de capitais e câmbio, Estado indutor, planejamento e soberania. A Ásia é a região mais dinâmica do capitalismo mundial hoje, e a maioria de seus países é abertamente desenvolvimentista. Os Tigres Asiáticos, Coreia do Sul, Singapura e Taiwan; os “novos Tigres”, Vietnã, Malásia e Tailândia; e também a China e o Japão cresceram com políticas desenvolvimentistas em rechaço à ilusão do livre mercado.

Hoje um dos países mais produtivos do mundo, a China, que com seu sistema político exótico realiza o projeto nacional mais bem-sucedido do mundo, prega o fim das barreiras alfandegárias. Ontem um país agrícola e sem indústria, a China protegeu sua indústria nascente. Com a recente guerra comercial com os EUA, passamos a não poder ter dúvidas sobre o que os EUA realmente

pensam do livre mercado, [16] a despeito de sua retórica contraditória. Quando se fala de proteção e política industrial no Brasil, isso evoca lembranças desagradáveis nas pessoas. No passado, a ausência de metas de desempenho obrigatórias e públicas para as indústrias sob incentivo de alguma política industrial causava uma farra de dinheiro público para os “amigos do rei” (e, mais recentemente, os “campeões nacionais”), e não conseguia resolver nosso atraso tecnológico. Não obstante, a industrialização brasileira entre 1930 e 1980 foi a mais bem-sucedida do mundo. Se ainda por cima aprendermos com os países asiáticos a fazer política industrial com metas públicas de rendimento, punições claras por descumprimento e financiamento soberano, podemos ir muito mais longe.

O melhor exemplo de projeto nacional de desenvolvimento que posso dar aqui é o de Singapura. Por que o melhor? Porque foi objeto da maior quantidade de mentiras e mistificações liberais. Não é improvável que você tenha ouvido falar que Singapura é um exemplo de sucesso do liberalismo econômico. [17] Acho difícil imaginar alguma história mais mentirosa do que essa. Singapura é uma cidade-estado localizada numa ilha do Sudeste Asiático, ao sul da Malásia. Ela tem um Estado tão forte e um desenvolvimento tão planejado que projeta até sua taxa de natalidade e regula o fluxo de imigrantes de acordo com as carências do mercado de trabalho.

Governada por um partido nacionalista e socialista desde sua independência, em 1959, o Partido de Ação Popular, Singapura tem um alto grau de regulação estatal na economia. O sistema de impostos é altamente progressivo (em que os mais ricos pagam proporcionalmente mais). Dona de dois dos oito maiores fundos soberanos do mundo (GIC e Temasek), seu Estado tem participação acionária ou propriedade em oito das dez maiores empresas do país. A habitação é política de Estado, e não de mercado, e a agência estatal para habitação é responsável por 80% dos imóveis construídos. [18] A propriedade privada da terra quase não existe e o direito de posse da maior parte dos imóveis é de 99 anos. [19] Além da habitação, o Estado controla todos os outros serviços essenciais. Energia, transportes, saúde, educação básica e superior são quase 100% estatais (com exceção da geração de energia e da operação de algumas linhas de transporte, que tem participação privada).

Mais ainda: também é disseminada a versão de que Singapura não possuiria previdência ou direitos trabalhistas, o que é somente mais um crime que os think tanks neoliberais cometem contra a opinião pública. Singapura possui um fundo de previdência de contribuição obrigatória do empregador e hoje tem mais direitos trabalhistas do que o Brasil, que adotou verdadeiras aberrações com a reforma trabalhista do Governo Temer. Em Singapura, a jornada de trabalho é de 44 horas semanais, há uma hora obrigatória para almoço, no mínimo um dia de descanso remunerado por semana, onze feriados nacionais pagos, quatorze dias de licença remunerada em caso de doença e sessenta dias em caso de internação. [20]

Singapura, assim como a China, não deve ser um modelo para nós em relação a liberdades individuais ou regime político, mas mais uma vez nos aponta o caminho universal para o desenvolvimento: poupança interna, Estado forte e regulador, crédito nacional, juros baixos, coordenação estatal e privada, política industrial, educação massiva e de qualidade e soberania. 

Ecologia para salvar o planeta

Estima-se que se o padrão de consumo do norte-americano fosse generalizado para toda a humanidade, precisaríamos de 4,5 planetas Terra para sustentá-lo. Mesmo sem generalizar o consumismo norte-americano, o Banco Mundial avalia que nosso consumo global hoje já é 1,5 maior que a capacidade da Terra de reproduzi-lo, e que se a população mundial chegar a cerca de 10 bilhões de pessoas em 2050 serão necessários quase três planetas Terra para sustentar o atual estilo de vida da humanidade. [21]

Desnecessário é lembrar que só temos uma Terra. Não devemos ser ingênuos quanto aos alertas de insustentabilidade emitidos por esses certos organismos. Eles também são usados como instrumentos na luta contra nosso desenvolvimento. Mas parece evidente que a Terra, há algum tempo, já passou de seu estado de equilíbrio. Estamos alterando significativamente nosso meio ambiente com consequências dificilmente previsíveis. O cenário esboçado anteriormente se coordena com minha reflexão sobre os padrões de consumo excitados pela globalização e pelas novas mídias. E ele nos lembra de que a salvação ecológica de nosso planeta passa por uma reespiritualização da sociedade, seu retorno à vivência dos valores e à rejeição ao consumismo, que abordarei no próximo item.

Mas isso não será suficiente. O avanço tecnológico também é parte indissociável da luta ecológica. Ele pode ser voltado para diminuir o impacto de nossas ações sobre o planeta, ou, até mesmo, revertê-las. Mas acima de tudo precisamos eliminar aquilo que é uma das maiores causas de impacto ambiental: a miséria. Não que os pobres, eles mesmos, possam ser responsabilizados pela degradação urbana ou pelo ataque à floresta. A falta de saneamento também polui rios, lagoas e mares. A falta de dinheiro para comprar gás (como hoje assistimos no Brasil por causa da política de preços da Petrobras submetida à lógica do mercado) obriga as pessoas a cortar lenha para fazer comida. A falta de emprego qualificado força a expansão da fronteira agrícola. Sem desenvolvimento não há preservação ecológica, pois para sobreviver os excluídos da economia têm que recorrer a formas mais primitivas e ineficientes de exploração dos recursos naturais. O exemplo do Brasil talvez seja o mais importante para ilustrar essa tese. Um fato oculto nas disputas em torno da questão ambiental é o papel da desindustrialização na devastação de nossos

biomas. Um país que vem reprimarizando aceleradamente sua economia continua a precisar de divisas para equilibrar sua balança de pagamentos. Sem o recurso das exportações de bens manufaturados de maior valor agregado, resta ao país essa contínua pressão que vivemos hoje para a expansão da fronteira agrícola e exploração mineral descuidadas. Por mais que a grande produtividade do agronegócio continue crescendo, uma economia baseada em exportação de commodities vai sempre ser refém das bruscas oscilações de preços. O resultado não é trágico apenas para a vida econômica, o meio ambiente também sente esse impacto.

Por mais engajado ecologicamente que seja um governo no Brasil, se não enfrentar o problema da desindustrialização, em médio prazo, a desorganização das finanças externas cuidará de recompor a correlação de forças em prol do desmatamento. Em última instância, só no enfrentamento do subdesenvolvimento e da dependência é que conseguiremos resolver de fato a questão ambiental brasileira. Do contrário, até podemos conseguir vitórias temporárias nessa área, mas a força dos ciclos econômicos mundiais, especialmente cruéis com os países subdesenvolvidos, promoverá retrocessos seculares. Industrializar para preservar deveria ser um dos lemas de quem luta pelo meio ambiente na periferia do capitalismo.

Entretanto, seja na periferia ou no centro do capitalismo, é tarefa progressista assumir a questão ecológica sem negar sua urgência insofismável para o futuro da humanidade e de toda a vida na Terra. 

Reespiritualizar a sociedade

Acredito que a grande tarefa do progressismo no século XXI, necessária para que possamos realizar tudo o que levantei antes, é se reespiritualizar e ajudar na reespiritualização da humanidade. Por reespiritualização entendo voltar a reconhecer e atuar com base na dimensão dos valores – do verdadeiro, do justo, do bom, do belo, da compaixão –, afastando-se de um materialismo grosseiro que comprometeu parte de sua atuação na sociedade até aqui. É claro que entre esses valores se encontra o do sagrado, mas a questão não se resume a ele. Não se trata de misturar religião com política, mas de voltar a fazer política, assim como de projetar uma sociedade orientada a valores. Não acredito haver outro meio de salvar a humanidade de um grande desastre social, político e ecológico.

O consumismo grotesco que infelicita nossa juventude hoje é uma verdadeira fábrica de infelicidade, alimentado por uma máquina publicitária que existe para criar carências que não existiam. Tal aberração só faz sentido numa sociedade que quer viver para criar e consumir o máximo possível de bens materiais. Mas o objetivo último de uma economia e de um governo não é esse, e sim o de criar as condições para o nascimento e o sustento de seres humanos e de sua felicidade. Como exemplo de uma de muitas ações que deveríamos fazer para ajudar nessa reespiritualização está o investimento maciço numa educação criativa, libertadora e contínua, que desenvolva o pensamento crítico e rejeite o niilismo disseminado em nossa sociedade. A escola pública não é lugar para realizar revolução cultural ou doutrinação moral de nenhuma natureza, mas sim de transmissão do legado do conhecimento humano bem estabelecido.

Mas ela é também lugar para desenvolver as habilidades básicas de argumentação, raciocínio, crítica e solução de problemas de nossas crianças, e, por que não dizer, de nós mesmos, caso queiramos passar a vida em aprendizado contínuo. E serão essas habilidades que propiciarão essa revolução cultural. Pois a tarefa de reespiritualizar nossa cultura é política. Como parte da luta ecológica, por exemplo, devemos generalizar o esforço de reflexão sobre o ato de consumo. Levar os cidadãos a se perguntarem sobre qualquer produto ou serviço não só “quanto custa?”, mas “preciso mesmo dele?”, “Quem aproveita comunitariamente meu ato de consumo? Minha região? Meu país? Minha comunidade?”, “Meu ato de consumo é fraterno à natureza na origem e no rejeito?”

Não deveríamos optar por um produto menos belo, barato ou mais caro caso ele tenha um adicional felicitante para mim, que é ajudar a dar renda à minha comunidade ou proteger a natureza? Humanizar o capitalismo não é só criar um Estado de bem-estar social, mas proteger nossas crianças de uma cultura de consumo que cria carências artificiais e infelicidade. Para isso, temos que debater formas de desestimular o uso das novas tecnologias pela máquina de moer publicitária – produtora de desejos, carências, infelicidade, cultura da ostentação, sentimento de inferioridade, individualismo e indiferença à miséria.

Temos que salvar as novas gerações de uma vida sob estresse permanente causado, de um lado, por subemprego, exploração e insegurança de um mercado selvagem e, de outro, pelo massacre cientificamente planejado da enxurrada de imagens e sons publicitários que produzem a frustração e a infelicidade. Ao mesmo tempo, é o Estado, e não o mercado, que deve buscar recompensar manifestações de altruísmo, generosidade e espírito cooperativo, porque a lógica do capitalismo nunca as recompensará. Conquistar para o ócio e a vida na dimensão dos valores o tempo que a automação e a tecnologia da informação vão eliminar do trabalho humano é uma das principais tarefas do progressismo para ajudar nessa reespiritualização. E isso deve ser feito através da paulatina diminuição da jornada de trabalho.

E essas conquistas jamais serão medidas pelo PIB. Precisamos julgar as sociedades mais pelo bem-estar atingido do que pela riqueza material produzida. Temos que produzir mais felicidade do que bens. Não estou falando de religião, embora as virtudes da parcimônia, da austeridade, do amor ao próximo, do compromisso com a vida, da solidariedade com os mais pobres sejam pontos de absoluta convergência entre o que penso e o que pregam os melhores líderes espirituais e religiosos da humanidade. Acredito comovidamente que se há no mundo um país que tem capacidade de oferecer ao mundo um novo experimento civilizatório, este é o Brasil. No momento em que voltar aos trilhos do desenvolvimento e da conciliação nacional, poderemos vir a nos tornar um novo e original marco civilizatório da humanidade, apresentando uma alternativa reespiritualizada de sociedade contra o materialismo voltada ao campo dos valores.

Cada vez há mais pessoas no mundo, e entre nós brasileiros, que me dizem que este não é um sonho solitário. E então sabe como é, né? Sonho que se sonha só é apenas um sonho. Quer sonhá-lo junto comigo?

POR UM NOVO PROGRESSISMO GENUINAMENTE BRASILEIRO

“Por que o Brasil ainda não deu certo?”, é a pergunta que faz Darcy Ribeiro no prefácio de O povo brasileiro. [22] É a pergunta que todo brasileiro se faz. Como pode um continente cheio de recursos naturais, solo fértil, sol o ano inteiro, água abundante, unidade linguística, cultural e povo mestiço ainda não ser capaz de gerar riqueza e felicidade abundantes? As respostas a essa pergunta que são mais valorizadas em nossa academia tratam o Brasil como um planeta próprio, colocando a culpa por sua condição em seu povo e cultura. Bem, de fato, a culpa não pode ser do território ou do clima, embora nossa dimensão tropical acrescente desafios e conceitos muito peculiares, que a cultura e as instituições do Atlântico Norte ou o exotismo (a nossos olhos) da cultura e institucionalidade orientais não poderão nos ensinar. Mas também tem que ter algo a ver com o fato de termos nascido do colonialismo e crescido sob o escravagismo. Se não soubemos nos erguer apesar disso, como outras nações o fizeram, a culpa certamente é primariamente nossa. Mas que tipo de culpa, exatamente? Será que a culpa está em termos criado um modelo hipócrita de “homem cordial”, ou no “patrimonialismo”, que confunde espaço público e privado, ou na vulgarização desse conceito na “corrupção” udenista, ou ainda nas suas estruturas sociais arcaicas que demandam modernização? Ou será que, como afirmam nossas elites, a culpa é do povo brasileiro, que não seria bom, honesto, culto e civilizado o suficiente? Seria alguma espécie de defeito genético? Pois eu acho essas interpretações nada mais do que expressões de um racismo e desprezo brutal entranhados na relação da elite econômica e cultural brasileira com nosso povo.

Durante toda a minha vida eu me fiz a pergunta de Darcy, e a convicção que tenho hoje é que as respostas tradicionais a essa pergunta estão erradas. Acho que um progressismo genuinamente nacional tem que rejeitar essas fábulas que construíram uma narrativa inferiorizada de nosso povo e uma visão distorcida de nossa cultura. Nosso país nunca alcançará seu máximo potencial se continuar reproduzindo modelos que outros povos desenvolveram para si mesmos baseados em seus próprios problemas, história, cultura, região geográfica, potencialidades e conflitos. Não devemos buscar construir aqui uma civilização estrangeira, somente buscar aprender com suas experiências.

Mas, principalmente, devemos aprender com nossas próprias experiências. E foi assim que o estudo de nossa história econômica, a luta, a prática, a experiência e os anos foram me revelando que o trabalhismo não era só uma forma de social-democracia brasileira. Ele era a forma de social-democracia brasileira. Um caminho próprio, criado do ventre de nossa cultura, que valoriza nosso povo e busca a justiça social através do desenvolvimento. 

Trabalhismo: o caminho brasileiro

Dos partidos em que realmente militei [23] – o PMDB da redemocratização, o PSDB que ajudei a fundar, PPS, PSB e agora o PDT –, minha constante, apesar da conturbada vida partidária, tem sido a luta pelo desenvolvimento, a soberania e o Estado de bem-estar social. Enfim, é melhor mudar de partido para não mudar de ideais e práticas do que ficar num partido que mudou de ideais e práticas. Apesar de ter concorrido à Presidência da República, em 2002, pela Frente Trabalhista (PDT, PTB e PPS), minha escolha tardia pela filiação ao PDT é algo que hoje só posso lamentar. Enfim, ninguém nasce pronto. Ninguém sequer morre pronto. Não me condeno, para ser sincero. O fato é que, como qualquer jovem que entra na universidade brasileira, também fui exposto às interpretações liberais e marxistas sobre a natureza do Brasil e do trabalhismo criado por Getúlio Vargas. Porque essa é a educação que a elite liberal e a esquerda marxista brasileira legam aos nossos jovens: a destruição da imagem de nosso país e nossos heróis. Afinal, como ambas são internacionalistas e desprezam a própria noção de pátria, é natural que transformem em vilões seus maiores emancipadores. Essa é a visão que a elite tenta impor ao Brasil profundo: “Nós não temos valor”. Só a maturidade, a experiência e a confluência de valores e lutas com o partido que já apoiou duas candidaturas minhas à Presidência da República me conduziram ao leito fundador da luta do povo brasileiro por sua soberania, seus direitos, sua indústria e sua liberdade: o trabalhismo.

O Brasil moderno foi fundado pela concepção trabalhista. Essa foi a corrente política diretamente responsável pela industrialização do país e pela construção de um consenso desenvolvimentista que durou até a ascensão do discurso neoliberal. Não foi pouca coisa. Sob a liderança do modelo inaugurado por Getúlio Vargas, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo entre 1930 e 1980. A questão nacional é central para essa tradição que se formou de políticos e intelectuais como Alberto Pasqualini, João Goulart, Anísio Teixeira, Leonel Brizola, Theotônio dos Santos e Darcy Ribeiro. Assume, como nenhuma outra no país, a realidade do imperialismo e de um processo de exploração e intervenção constante sobre nós que nos condena ao subdesenvolvimento crônico, assim como a crença de que a mera importação de modelos europeus nunca emanciparia nosso país. O trabalhismo foi o único desenho genuinamente nacional de economia política, uma adaptação do keynesianismo [24] e da social-democracia dos anos 1940 à nossa realidade.

Além disso, foi o trabalhismo que conseguiu criar meios de os trabalhadores brasileiros se organizarem de forma efetiva para não apenas lutarem por mais direitos, mas se tornarem a base da mudança econômica e social do Brasil. Promoveu as primeiras organizações sindicais do país e consolidou as leis trabalhistas. Ele é também a materialização brasileira da Doutrina Social da Igreja e tem essa intenção de origem. Considere, por exemplo, este trecho: “É necessário que mercado e Estado ajam de concerto um com o outro e se tornem complementares. O livre mercado pode produzir efeitos benéficos para a coletividade somente em presença de uma organização do Estado que defina e oriente a direção do desenvolvimento econômico, que faça respeitar regras equitativas e transparentes, que intervenha também de modo direto, pelo tempo estritamente necessário, nos casos em que o mercado não consegue obter os resultados de eficiência desejados e quando se trata de traduzir em ato o princípio redistributivo”. [25] Poderia ter saído de uma obra do trabalhista Alberto Pasqualini ou de alguma conferência de Keynes, mas é tão somente um excerto da Doutrina Social da Igreja.

Essa comunhão entre a luta por justiça social e o cristianismo caracteriza o trabalhismo desde seu início. Ele advoga um modelo político e econômico que equilibra a garantia da propriedade privada com sua função social. Esse equilíbrio se expressa de forma muito feliz na famosa frase de Leonel Brizola: “A propriedade privada é uma coisa tão boa, que a queremos para todos”. Apresenta-se como uma alternativa tanto ao denominado “socialismo real” quanto à tradição econômica liberal. Continua a ser a verdadeira alternativa nacional ao “petucanismo”, a autodenominada “esquerda” democrática, que quando chegou ao poder aderiu ao neoliberalismo com maior ou menor força. Também na luta pelos direitos das minorias, o trabalhismo foi pioneiro no Brasil. Em linha com as melhores tradições dos movimentos de direitos civis da época, desde seu documento de refundação, a “Carta de Lisboa”, de 1979, os fundadores do PDT viam na opressão histórica uma dívida a ser resgatada, e priorizaram pela primeira vez em nossa história partidária a luta pela causa das mulheres, dos negros, dos índios e dos idosos.

Essa luta está inserida numa refundação do olhar sobre o Brasil que mais uma vez opõe o trabalhismo a todas as tradicionais interpretações elitistas sobre nós. Para o trabalhismo, o povo brasileiro, sua miscigenação e seu sincretismo cultural são a grande riqueza, e não o problema do país. Aquilo que pode nos transformar em uma civilização única na Terra. É por isso que o PDT se tornou conhecido como o partido da educação. Para o trabalhismo, o investimento maciço em educação é um projeto não só de diminuição das desigualdades, mas de emancipação nacional. O desenvolvimento e a soberania de uma nação dependem de um povo altamente qualificado que seja sua força criadora e produtiva. Não só para se apoderar da tecnologia estrangeira e produzir sua própria, mas, acima de tudo, para que tenha conhecimento de si mesmo, sua história, seus interesses, e produza criticamente um pensamento nacional autônomo.

Daí a longa tradição trabalhista na educação, que vai de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro até hoje, por exemplo, com Mangabeira Unger e sua defesa do que denomina “educação transformadora” como pilar da superação do colonialismo mental que nos condena ao subdesenvolvimento. Mas essa tradição está longe de ser somente uma tradição de pensamento: ela é de fato uma tradição política de realizações. Quando no poder, o PDT transforma a educação de prioridade discursiva em prioridade orçamentária, como vimos com as revoluções educacionais que Brizola promoveu no Rio Grande do Sul com as “brizoletas” e no Rio de Janeiro com os Cieps, ou como vemos hoje na educação do Ceará, em Sobral.

O trabalhismo resume melhor não só nosso passado, mas nosso presente. A identidade entre o ideário do PDT e o pensamento médio do brasileiro é impressionante. Baseando-nos nas já citadas pesquisas do Datafolha e do Latinobarômetro sobre esse pensamento médio, destacamos desde a defesa das leis trabalhistas contra a superexploração do trabalho, a defesa da indústria nacional, do Estado indutor da economia via investimentos públicos, da melhor distribuição de renda, da ideia de que a pobreza é predominantemente causada pela falta de oportunidades, até a defesa de pontos específicos como uma maior transparência do sistema de votação eletrônico e do desarmamento. A tradição que hoje integro orgulhosamente, assim como milhares de jovens que a vêm descobrindo ao longo dos últimos anos, foi resumida precisamente por Mangabeira Unger em seu discurso de refiliação ao PDT. O que nos distingue hoje até mesmo dentro do campo progressista é: 

a) procurar ser a voz da maioria desorganizada; 

b) o nacionalismo, entendido como afirmação nacional contra o colonialismo; 

c) a primazia dos interesses do trabalho e produção sobre o financismo; 

d) o compromisso da educação como instrumento libertador; e, por fim, 

e) o empoderamento do povo brasileiro através da criação das condições para empreender e criar, superando o assistencialismo.

É por esses compromissos que, desde sua organização por Getúlio Vargas até os dias atuais, o trabalhismo brasileiro vem sendo combatido por todos os lados. Difamado pelas esquerdas liberal e marxista e violentado pela direita antidemocrática que arrancou João Goulart da cadeira presidencial, impondo 21 anos de ditadura, o trabalhismo resiste como esse fio da história que nos conecta ao passado e continua a apontar um futuro para nossa nação.

Nunca foi fácil construir ou manter um partido trabalhista no Brasil, uma vez que ele sempre foi facilmente reconhecido como o maior opositor dos interesses neocoloniais. Desde sua fundação, que aconteceu sob o impacto da deposição de Getúlio em 1945, faltando pouco mais de um mês para as eleições que ele havia convocado, até as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores para organizar o partido durante o governo Dutra. Desde o traumático suicídio de seu maior líder até a deposição de seu presidente, João Goulart, dez anos depois. Desde a ditadura militar, que exilou seus maiores quadros e impediu sua renovação geracional, aos golpes sofridos com a redemocratização, como a perda da sigla PTB e o estímulo do regime ao estabelecimento de uma esquerda antivarguista com base no novo sindicalismo. E, por último, desde as dificuldades enfrentadas por Brizola para levar a chama trabalhista adiante durante a hegemonia neoliberal até a incrível habilidade de Carlos Lupi em seguir empunhando a bandeira trabalhista após a morte de Brizola, conseguindo manter o fio da história brasileira conectado mesmo sob ataque do poder do governo central, determinado a tomar o partido para convertê-lo em mais um satélite estéril de seu projeto social-liberal. São esses companheiros, cada um em sua grandeza, se batendo contra diferentes inimigos de épocas e conjunturas distintas, que nos legaram a chama do trabalhismo, que trouxeram até esse ponto de nossa história o instrumento que nos permite seguir na luta por um país soberano, desenvolvido e justo.

Que esses compromissos se atualizem em sintonia com a transformação de nossa sociedade e continuem a orientar nosso caminho rumo a esse futuro. Que sejam nosso único olho numa terra de cegos pela propaganda neoliberal, pelo ódio, pelo preconceito, pelo imperialismo, pela divisão fratricida e pela vontade férrea de nada enxergar.

O Brasil vai dar certo

Em tempos de depressão generalizada com a destruição de nosso país, encerro aqui minhas reflexões com uma mensagem de esperança, uma esperança que, nos dias de hoje, quando temos no nosso próprio governo o maior inimigo de nossa soberania e desenvolvimento, precisa ser renovada pela razão. 

Somos uma sociedade multiétnica, uma civilização mestiça que sempre cultivou o sincretismo religioso e a tolerância. Isso não pode mudar. Isso não vai mudar. Todo o planeta tem problemas no abastecimento de alimentos, água e minérios sensíveis, enquanto nós somos um dos três melhores do mundo em todos esses fatores. Isso não vai mudar. Temos, portanto, um povo e um continente fantásticos. Não temos interdição razoável alguma para nos tornarmos uma grande potência. O Brasil vai dar certo.

Só que o futuro já chegou e ele ainda não deu certo. É porque esse “vai dar certo” não será consequência fatalista do espontaneísmo dos empreendedores, do mercado ou menos ainda dos investidores internacionais. Esse “vai dar certo” não será consequência de figuras políticas personalistas e mistificadoras. Esse “vai dar certo” será consequência de um povo que abandone a ilusão de que as grandes potências mundiais simplesmente nos deixarão nos transformarmos num colosso. De um povo que entenda que teremos que lutar por isso. Esse “vai dar certo” será consequência de um povo que seguirá em frente, sem se autoflagelar por seus erros, aprendendo com eles e descobrindo que o Brasil não precisa de salvadores ou mitos, mas de projeto. Quando convergirmos a inteligência nacional, o mercado e o governo para esse projeto de consenso básico. Quando a maioria de nós abrir mão de preconceitos e interdições ideológicas para aplicar uma racionalidade que o mundo que tem êxito já conseguiu aplicar. Quando entendermos que a crise atual é uma terapia de choque das elites nacionais e internacionais para entregar a preço simbólico todo o nosso patrimônio público.

Quando nosso povo insistir em repetir “basta” para a vida desumana que leva gastando em média mais de uma hora e meia no transporte por dia, sofrendo o flagelo da violência em níveis de guerra civil e a falta de saneamento básico.

Então o Brasil vai começar a dar certo.

Se eu estarei aqui para ver, não sei. O que sei é que não serei eu que salvarei o Brasil. Porque o que o salvará um dia é seu próprio povo munido de um projeto e da determinação de executá-lo. E para ajudar nosso povo a entender isso dedicarei até o último dia de minha vida. 

1 Expressão francesa que significa “deixar fazer”. Ficou associada ao liberalismo econômico (que é diferente de liberalismo político), à ideia de que o mercado deve funcionar livremente, sem interferência ou regulação do Estado, que só teria a função de proteger a propriedade.

2 PRESSE, France. “Economia argentina cai 3,5% no terceiro trimestre e entra em recessão.” O Globo, dez. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/12/18/economiaargentina-cai-35-no-terceiro-trimestre-e-entra-em-recessao.ghtml

3 PDT. Manifesto de Fundação. Disponível em: http://pdt-rj.org.br/manifesto/

4 PDT. Estatuto. Disponível em: http://www.pdt.org.br/wp-content/uploads/2019/06/Estatuto-PDT-2019.pdf

5 “Desigualdade de renda no Brasil atinge o maior patamar já registrado, diz FGV/IBRE.” G1, maio 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/05/21/desigualdade-de-renda-nobrasil-atinge-o-maior-patamar-ja-registrado-diz-fgvibre.ghtml

6 “Brasil tem 2ª maior concentração de renda do mundo, diz relatório da ONU.”G1, dez 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/12/09/brasil-tem-segunda-maiorconcentracao-de-renda-do-mundo-diz-relatorio-da-onu.ghtml

7 Com a pandemia, essa situação ficou dramaticamente alterada.“Desemprego cai a 3,6% em abril nos EUA, o nível mais baixo desde 1969.” Estado de Minas, maio 2019. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2019/05/03/interna_internacional,1050897/desemprecai-a-3-6-em-abril-nos-eua-o-nivel-mais-baixo-desde-1969.shtml

8 O termo “udenismo” vem da antiga UDN, partido brasileiro que existiu de 1946 a 1968. Foi cunhado em virtude da prática política desse partido e de seu maior expoente, Carlos Lacerda, que consistia em acusar o adversário o tempo todo de corrupção, exercendo governos que constroem infraestrutura de o fazerem por propinas, a mobilizar o judiciário para intervir no processo político e tentar golpes de Estado.

9 BARBOSA, Nelson. “Juros pagos pelo setor público: o total caiu em proporção do PIB, mas os pagamentos reais continuaram a subir em 2017.”Blog do Ibre, fev. 2018. Disponível em: http://blogdoibre.fgv.br/posts/juros-pagos-pelo-setor-publico-o-total-caiu-em-proporcao-do-pib-masos-pagamentos-reais

10 2019 World Happiness Report.

11 REUTERS. “Facebook busts Israel-based campaign to disrupt elections.” Publicado em 16 maio 2019. Disponível em: https://www.apnews.com/7d334cb8793f49889be1bbf89f47ae5c

12 “Facebook eleva para 87 milhões o nº de usuários que tiveram dados explorados pela Cambridge Analytica.” G1, abr. 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/facebook-eleva-para-87-milhoes-o-n-de-usuariosque-tiveram-dados-explorados-pela-cambridge-analytica.ghtml

13 Como expôs com maestria Yuval Harari (2018) em 21 lições para o século 21.

14 Em outubro de 2019.

15 UNGER, Roberto Mangabeira. A economia do conhecimento. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.

16 “Estados Unidos vão aumentar para 25% tarifas sobre US$200 bilhões em produtos importados chineses.” G1, maio 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/05/05/estados-unidos-vao-aumentar-para-25percentas-

tarifas-sobre-produtos-chineses-importados.ghtml

17 Há um ranking que supostamente fornece “índices de liberdade econômica”, o da Heritage Foundation, que foi construído com parâmetros que, em sua maioria, não tem relação com o neoliberalismo. Para a elaboração do ranking, usa-se critérios que na verdade definem pontuações altas para países que já estão na ponta econômica e, portanto, podem ter baixas taxas alfandegárias e câmbio livre. Outros parâmetros que medem direitos de propriedade, inflação,

corrupção e burocratização também não têm relação com o neoliberalismo. Esses índices são as maiores fontes da difusão dessa ficção sobre Singapura.

18 “Public Housing – A Singapore Icon.” HDB. Disponível em: https://www.hdb.gov.sg/cs/infoweb/about-us/our-role/public-housing--a-singapore-icon

19 Singapore Government Agency. Disponível em: https://www1.sla.gov.sg/property-boundary-nownership/property-ownership. Acessado em 18 de maio de 2018.

20 Guide on Employment Laws – Ministry of Manpower. Disponível em: https://www.mom.gov.sg/~/media/mom/documents/employment-practices/workright/workrightbrochure-for-employees.pdf

21 ONU. “Banco Mundial: serão necessários três planetas para manter atual estilo de vida da humanidade.” Publicado em 19 ago. 2016. Disponível em: https://nacoesunidas.org/banco-mundialserao-necessarios-3-planetas-para-manter-atual-estilo-de-vida-da-humanidade/

22 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Global Editora, 2015.

23 Tive passagens transitórias de cerca de um ano pelo PDS e pelo PROS, que, devo confessar, foram movidas por mero pragmatismo eleitoral. Na primeira eleição que disputei, em 1982, meu pai era prefeito de Sobral pelo PDS, quando de última hora foi imposta a vinculação de voto, que obrigava a escolha de candidatos do mesmo partido de governador a vereador. Para conseguir concorrer, tive que me filiar ao partido. No ano seguinte, já estava no PMDB. A filiação ao PROS foi igualmente fruto de uma necessidade transitória, agora não minha, mas do meu grupo político, que, saindo do PSB às vésperas das eleições de 2014, precisava de uma legenda para concorrer ao pleito daquele ano. No ano seguinte, entramos no PDT.

24 Tradição de teoria econômica iniciada pela obra do economista John Maynard Keynes (1883-1946), que defende, dentro dos parâmetros da livre-iniciativa, a necessidade de uma forte intervenção econômica do Estado para garantir a estabilidade, o desenvolvimento, o pleno emprego e o controle da inflação.

25 Compêndio da Doutrina Social da Igreja, pp. 736 e 737. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20dott-soc_po.html#O%20papel%20do%20mercado%20livre