terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

En rit CaBré....

Leia essa introdução do livro "O olhar do século", biografia de Henri Cartier-Bresson, escrita por Pierre Assouline. Não deixará de querer lê-lo por inteiro tal a paixão com que o autor se debruça e fala de Cartier-Bresson.





QUANDO O HERÓI SE TORNA UM AMIGO

Na amizade como no amor, e em todas as coisas que ajudam a viver, nunca esquecemos uma primeira vez. Pelo menos não gostaríamos de esquecer. A primeira vez que encontrei Henri Cartier-Bresson foi em 1994. Nesse dia, o jornalista, e não o escritor, bateu à porta de seu ateliê, perto da Place des Victoires, em Paris, onde regularmente se isolava para desenhar. Ele finalmente aceitara as exigências de uma entrevista, mas com uma condição: que ela não fosse uma.

Conhecendo seu gosto por paradoxos, aceitei a proposta ante a perspectiva de uma conversa. Se ele tivesse apenas me convidado para tomar um chá, eu teria acorrido da mesma maneira, tanto minha admiração por ele era profunda, meu fascínio antigo e minha curiosidade sem limites. Passamos mais de cinco horas conversando, trilhando o curso sinuoso de sua memória e seguindo apenas o coração em digressões surpreendentes. Nada foi menos histórico do que aquela viagem no tempo. Saí de lá exausto e invadido por um sentimento caótico diante da imagem da época desordenada que ele vivera dia após dia como presente imediato.

Havíamos convocado o século em todas as suas manifestações, nos homens que o haviam moldado e nos lugares que o simbolizavam. Mas menos os acontecimentos do que os instantes, como se a prova importasse menos do que o vestígio. Nada de datas, acima de tudo nada de datas! Apenas impressões e silhuetas evocadas com fraca intensidade e, quando eu menos esperava, relatos de inacreditável precisão. 

O dia terminava. A luz da rua se insinuava cada vez mais fraca pelo ateliê, sem que no entanto ele se preocupasse em acender uma lâmpada. Isso não era importante. Enquanto ele preparava o chá, eu inspecionava o local. O mobiliário estava reduzido à mais absoluta simplicidade, uma biblioteca transbordando de livros de arte e catálogos de exposições com encadernações gastas de tão manuseadas. Nas paredes, em molduras de vidro um pouco deterioradas, desenhos de seu pai, guaches de seu tio e duas fotografias que não eram suas: uma tirada pelo húngaro Martin Munkacsi por volta de 1929, três meninos negros de costas, correndo à contraluz na direção das águas do lago Tanganica; a outra, pertencente ao Museu da Revolução no México, do mexicano Agustin Casasola, mostrando o falsário Fortino Samano, em 1913, diante do pelotão de fuzilamento dando as costas para um muro, com as mãos nos bolsos e um cigarro nos lábios, esboçando um sorriso de provocação e fazendo uma pose insolente para melhor enfrentar a morte. A primeira expressa a alegria de viver no que ela tem de mais intenso e espontâneo; a segunda, a liberdade absoluta apreendida no momento fatídico em que ela ultrapassa o ponto de não retorno.

Nenhuma outra imagem, muito menos sua. Quando voltamos a sentar, a conversa foi retomada de maneira ainda mais intensa, mas sob a condição de que eu desse algo em troca ao que ele me dera. No caso, respostas a suas perguntas. Enquanto eu levava a xícara aos lábios, ele deixou o silêncio se instalar e me olhou fixamente por um momento. Depois esboçou um sorriso:

– Há pouco, você me perguntou se eu continuava a tirar fotos. 
– De fato... 
– Pois bem, acabei de tirar uma de você, mas sem máquina, o que dá no mesmo... A armação de seus óculos exatamente paralela à parte superior do quadro atrás de você, chamava a atenção... eu não podia deixar passar essa admirável simetria... pronto!... De que falávamos mesmo? Ah, sim, Gandhi... Você conheceu Lord Mountbatten?

Reembarcamos para a Índia da descolonização, que nos levou naturalmente à China libertada do Kuomintang pelos comunistas, portanto à União Soviética, isto é, a Louis Aragon e seu jornal nos tempos da Frente Popular, logo aos filmes de Jean Renoir, e é claro à influência da pintura e... No fim do dia, eu estava convencido de ter colhido palavras muito preciosas. Eu estava enfeitiçado. Mas não era um sentimento inédito, pois essa profissão às vezes concede o privilégio de lidar com homens extraordinários, grandes testemunhas que atravessaram seus séculos de ponta a ponta sem jamais trair suas visões de mundo.

Se tivéssemos parado ali, aquela tarde não teria tido outra consequência que seu reflexo numa matéria de jornal. Acontece que, intrigado por algo inexplicável bem na hora de partir, me senti frustrado com sua discrição ao evocar a guerra. Arriscando desrespeitar seu pudor, perguntei de novo sobre seus anos de cativeiro na Alemanha, a convivência, as fugas fracassadas... Ele ficou pensativo por bastante tempo, com o olhar perdido no vazio, depois voltou a falar. Quanto mais avançava em seu relato, mais eu me convencia de que as confidências menos falsas são feitas com mais facilidade a desconhecidos. Não me contara ele que um dia, ao pegar um táxi em Paris, na conversa com o motorista revelara segredos que nunca confiara a ninguém, pois tinha certeza de que nunca mais voltaria a vê-lo? 

Ao lembrar de seus camaradas denunciados, torturados ou fuzilados, ficou com um nó na garganta. Ao murmurar seus nomes, a tristeza passou para o olhar. Então virou a cabeça, incapaz de reter as lágrimas.

Depois disso, ao me despedir de Henri Cartier-Bresson, eu sabia que um dia lhe dedicaria não um artigo, mas um livro. Não apenas ao maior fotógrafo vivo, ao desenhista renascido, ao repórter de longa data, ao aventureiro tranquilo, ao viajante de outras eras, ao contemporâneo essencial, ao fugitivo constante, ao geômetra obsessivo, ao budista agitado, ao anarquista puritano, ao surrealista não arrependido, ao símbolo da imagem no século, ao olho que escuta, mas principalmente ao homem por trás desses todos, aquele que os reúne, um francês em seu tempo. Como disse o poeta, é do homem que se trata.

Depois desse primeiro encontro, os anos se passaram. Nos vimos, falamos, ouvimos e observamos bastante. Quantas vezes? Não importa. Isso não quer dizer nada. Quando uma conversa duradoura se instala no tempo, ela se permite longas ausências antes de ser retomada como se tivesse sido interrompida na véspera; ela se reata a qualquer momento em ligações telefônicas, cartas e faxes; ela se inscreve com naturalidade no passar do 
tempo. Ela só pode acabar com a morte de um de seus interlocutores.

Durante muito tempo, Henri Cartier-Bresson não quis nem ouvir falar em biografia. Mencionar a palavra já lhe causava horror. Ele inclusive garante (Cartier-Bresson ainda estava vivo, quando da publicação da primeira edição francesa deste livro, em 1999. (N.E.)) nunca ler biografias, conforme comprovado por sua biblioteca. Dedicar-lhe um livro do gênero equivaleria a tirar uma foto sua. Ou pior ainda: a ofuscá-lo com a luz de um flash. Diante de uma objetiva necessariamente inquiridora, quem nunca o viu explodir de raiva, brandir sua faca Opinel e ameaçar o intrometido? Ele nunca suportou que lhe fizessem o que ele faz com os outros.

Assim como vê as retrospectivas de sua obra fotográfica como honras fúnebres um pouco prematuras, ele concebe a perspectiva de uma biografia como a colocação de uma laje tumular. Viver o momento presente, somente isso é válido. A vida é imediata e lancinante. A notícia pertence ao passado. Esse é o ensinamento de sua Leica.

Não se trata de uma desculpa para reservar para si a possibilidade de escrever uma autobiografia. Cartier-Bresson também nunca quis escrever suas memórias, apesar de não ter nada a esconder... De qualquer forma, o essencial sempre é mais bem dito indiretamente.

Em todo caso, ele se escuda em bons autores para justificar com livros sua hostilidade ao nascimento deste aqui. Em Proust, é claro, que queria distanciar o artista de sua obra, sendo esta o produto de um eu diferente do eu percebido em sociedade, evocado por cartas, traído por hábitos ou revelado por confidências. Em Léautaud também, que convidava a escrever falsas biografias, já que de qualquer maneira o gênero, a seus olhos, pertencia à ficção. E no velho Degas, que praguejava contra os literatos, acusados de serem produtores de anedotas: mmmmm... não, não... o que está oculto não diz respeito a ninguém... as obras precisam de um certo mistério... Em Cioran, por fim, mas somente até certo ponto. Por mais terrível que pareça, a ideia de um dia ter um biógrafo nunca faria Cartier-Bresson renunciar a ter uma vida.

Sua postura me pareceu digna de respeito. Porém, quanto mais penetrei em suas contradições, mais mergulhei num mundo onde a busca pela harmonia rivalizava com a tirania do caos. Sua paz interior dependia do resultado dessa luta. Não me senti no direito de perturbar o epílogo de sua história pessoal até o dia em que tive consciência de que a vida de Henri Cartier-Bresson era uma escola de desobediência.

Por isso segui o exemplo do mestre e desobedeci a ele.

É uma sensação muito estranha escrever sobre um contemporâneo. A vantagem pode se transformar em desvantagem. Entre esses dois extremos, é preciso manter o fascínio intacto sem jamais deixar de ser crítico e encontrar a distância certa entre a curiosidade e a indiscrição. Essa é a condição sine qua non para conseguir um retrato definitivo que não seja uma biografia apressada. Ao estudar Flaubert, Sartre dizia que entramos num morto da mesma maneira que num moinho. Mas como entrar num vivo?

Por um lado, desfrutamos do secreto prazer de poder recorrer à sua memória a qualquer momento. Por outro, temos a estranha impressão de que ele espia por cima de nosso ombro enquanto escrevemos. Stefan Zweig teria sonhado em poder telefonar a Maria Antonieta em plena noite para verificar se ela ficara tão “encantada” quanto ela dissera por ser invocada no banquete oferecido ao regimento de Flandres, em 1º de outubro de 1789. Como teria reagido André Maurois se Benjamin Disraeli tivesse criticado meticulosamente cada uma das páginas do manuscrito dedicado a ele à medida que avançava? Quanto a mim, algo inédito aconteceu: meu herói se tornou meu amigo.

É curioso bater nas costas de um mito, insólito contradizer uma lenda, estranho interpelar uma instituição, arriscado criticar um clássico, audacioso corrigir um monumento... No Japão, diriam que ele é um tesouro nacional vivo. Com um levantar de ombros, um gesto da mão, Henri Cartier-Bresson liquida esse falso problema. Considera todas essas palavras verdadeiros palavrões. Até mesmo o suave nome de “artista” o exaspera, tanto vê nele uma noção burguesa herdada do século anterior.

Que seja. Mas como retraçar o destino excepcional de um homem a quem chamamos de “você”, apesar de meio século de diferença de idade, que nos confia sua intimidade depois de fazermos o mesmo? Diremos que de qualquer forma ele tem muitos amigos, que nunca os trata com formalidade e que é generoso por natureza. E, se isso não bastar, pensaremos no que Joseph Kessel escreveu no prefácio do livro que dedicou a seu amigo Mermoz: “Terei o direito de utilizar minhas descobertas, tuas confissões? Onde passa a linha divisória entre a exigência da verdade e a indiscrição inútil? Penso que não se deve esconder nada dos movimentos de um ser que é profundo e puro...”.

Para todos os que têm olhos para ver, em quase todos os lugares do planeta, ele é Cartier-Bresson. Os profissionais da área o evocam pela sigla HCB. Os iniciados preferem a piscadela surrealista de suas dedicatórias cheias de cumplicidade: “En rit CaBré”. (Trocadilho de Cartier-Bresson com as primeiras sílabas de seu sobrenome e a palavra cabré, que significa “rebelde, arisco”. O outro trocadilho é com seu primeiro nome, Henri, que tem o mesmo som de “en rit”, que significa “ri” ou “ri-se”. (N.T.)). Os outros o chamam de Henri como se ele fosse o único.

Cada um tem uma ideia própria desse personagem. Juntas, essas ideias tornam um pouco menos indecifrável seu grão de loucura, seu gênio, sua parte sombria. Todas encerram um pouco de verdade, pois cada um se apropriou de uma parte do homem de quem é amigo. A minha é o mosaico de todas. 

Biógrafos ou retratistas, não passamos de intermediários, insignificantes mensageiros que se autocondenam a fazer a ligação entre um homem e o resto do mundo para saciar a legítima curiosidade das pessoas.

Esse homem que alguns consideram insuportável, a maioria acredita morto – pois, apesar de sua importância no imaginário coletivo, Cartier-Bresson não abusa do exercício de sua autoridade. Quase nunca o vemos na televisão, quase nunca o ouvimos no rádio, e ele não aparece na imprensa de maneira intempestiva.

Pensam que está morto, e ele nada faz para desmentir isso, satisfeito de poder escapar dos incômodos que a notoriedade invariavelmente atrai. Cartier-Bresson é a impaciência em pessoa, mas também a curiosidade, a indignação, o entusiasmo e a cólera. Esse meditativo frenético não para no lugar, incapaz de dominar seu próprio temperamento, como se a verdadeira vida estivesse sempre no movimento. Sua intranquilidade acaba por perturbar a paisagem. Ele é daqueles que devem sua nobreza à excentricidade. Nada o deixa mais secretamente feliz do que fazer um uso deliberado do aristocrático prazer de desagradar. Quando pensamos em tudo o que seus olhos viram, sentimos vertigens.

Enfim, um artista. Reconstituir sua vida, revisitar sua obra, é contar a história de um olhar.

Uma vida é como uma cidade: para conhecê-la, é preciso se perder nela. Foi isso que fiz: me perdi em seu universo interior sem me preocupar com a cronologia. Por dias e noites a fio, li até o menor de seus escritos e analisei toda a literatura dedicada a ele.

Mergulhei em seus arquivos com a secreta esperança de nunca mais emergir. Interroguei seus amigos, não sem pensar às vezes numa frase de Max Jacob: “Sempre esboçamos um sorriso ao falar de um ‘grande homem’ que conhecemos, pois se estabelece um contraste entre a reputação e o roupão”.

Revi suas fotografias pela enésima vez como se descobrisse cada uma pela primeira vez. De novo e de novo, encarei os personagens que retratara, tentando entender como tinham conseguido resistir ao tempo. Ouvi-o falar sobre tudo e nada na fabulosa barafunda de suas lembranças.

Não sabemos o que nos reserva o passado. Existem coisas que somente um homem pode saber sobre a própria vida. Algumas verdades sempre escaparão aos documentos e testemunhos, e isso é bom. Se tudo pudesse ser reduzido à sua lógica, perderíamos o mistério. Os fatos que enfileiramos como pérolas num colar são falsos, pois, como elas, obedecem a uma ordem implacável que despreza toda poesia. De que serve saber tudo se não sabemos nada a mais? Muitas vezes, no juízo que fazemos de uma obra, o inefável predomina sobre demonstrações mais bem-argumentadas.

Ele aparece como uma transparência sobre aquilo que a imagem não mostra, que está fora do campo de visão e que não é dito pelo fotógrafo. Tudo isso é muito evidente num observador como Cartier-Bresson, que sempre se interessou menos pelas pérolas do que pelo fio que as contém.

A verdade não está no esgotamento de um tema, mas em seus interstícios. Para que fazer a ladainha dos países onde viveu, se visitou quase todos? Para que fazer uma lista das personalidades que retratou, se fixou quase todas para a eternidade? Ganharíamos mais apontando o que lhe escapou. E depois? Nada. Não podemos exigir que um poeta seja completo em seu recenseamento do mundo, principalmente depois de descobrirmos que Proust e Cézanne são seus únicos “fotógrafos” de cabeceira. Suas verdadeiras referências são culturais. Se quisermos entender Henri Cartier-Bresson, precisamos nos desfazer da concepção tradicional de tempo e assimilar outra, às vezes anacrônica, em que o calendário dos fatos não necessariamente coincide com o das emoções. Precisamos também levar em conta que o tempo do relógio não é o mesmo do homem, que cada um tem sua música interior e que contar os acontecimentos de uma vida sem levar em conta a própria lógica seria tão inútil quanto lembrar uma ópera por seu libreto. Proust disse tudo isso, e mais: “Há dias montanhosos e árduos que levamos um tempo infinito a escalar, e dias de declive que se deixam percorrer a toda velocidade, cantando”.

Cartier-Bresson passou sua vida assim. Ele não viajou, ele morou no exterior sem se perguntar quando voltaria. Mais do que uma sutileza, trata-se de outra compreensão do mundo. Sua obra é prova disso. Ela também deve muito a Rodin, quando este dizia: “O que fazemos com o tempo, o tempo respeita”. É por isso que o inventário rigoroso dos dias desse homem será sempre menos importante do que a sombra feita por alguns deles em sua memória e na nossa.

Uma noite, quando perguntei o que pensava da visão de mundo de Nicolas de Staël, ele pulou de repente da poltrona, ficou na ponta dos pés, me olhou do alto e, com a voz muito mais grave, disse num tom cavernoso: 

– Stâââl, Staâââl...

Eu pensava saber quase tudo sobre aquele pintor, mas ignorava algo que Cartier-Bresson recordava: que ele era imenso e que sua voz de bronze causava forte impressão em todos os seus interlocutores. O timbre é uma coisa importante. Uma gravação antiga pode traduzir sua cor, restituir seus contornos, indicar seu desenho, mas jamais reproduzirá sua alma. O mesmo acontece com a intensidade de um aperto de mão, esse contato de palma com palma que permite sentir o toque da mão do outro e guardar sua memória particular.

Uma inflexão de voz e uma pressão às vezes dizem mais sobre um homem do que suas confissões. Cartier-Bresson tem uma maneira bastante própria de apertar a mão com firmeza, num vigor que reflete seu caráter por inteiro, e de pronunciar delicadamente as palavras, com uma distinção na ponta da língua que revela sua educação mais do que ele gostaria.

Assim como ganha em ser conhecido, ele gostaria de ganhar o mesmo em mistério. Não se importa de ser famoso, com a condição de poder continuar desconhecido. Seu plano é morrer jovem, mas o mais tarde possível. Inapreensível é aquele que, quando perguntado se é mesmo Henri Cartier-Bresson, responde: 

– Eventualmente...

A história de seu olhar é a história de um homem que por toda a vida se fez a mesma pergunta, “De que se trata?”, para a qual nunca encontrou resposta, porque ela não existe.

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