quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A guerra é bela....

Essa é uma parte do Livro, "O instante certo" de Dorrit Harazim.





A Guerra é bela

O livro de fotografia mais importante dos últimos tempos foi lançado em novembro de 2015 nos Estados Unidos. Ele não traz o cobiçado selo da editora alemã Steidl, por si só garantia de perfeccionismo e qualidade. Tampouco foi publicado pela Phaidon, a casa das artes visuais par excellence. Saiu pela editora de perfil mais offbeat, a powerHouse, porém conseguiu inflamar tanto o mundo da fotografia como o do jornalismo ao levantar uma questão de fundo: a da estetização da guerra na grande imprensa, com a cumplicidade de todos nós, leitores. 

O volume de 112 páginas e formato coffee-table chama atenção pela singularidade da capa, de autoria de Milton Glaser. Ela emula uma primeira página de jornal e tem por título, em letras garrafais, a manchete "War is Beautiful". Uma segunda linha fina faz as vezes de subtítulo: "The New York Times Pictorial Guide to the Glamour of Armed Conflict". 

Com layout evocativo ao do célebre matutino, na tipografia inclusive, ela traz no centro, como se fosse a foto do dia, uma belíssima imagem em tons de vermelho e amarelo, mas esvaziada de qualquer conteúdo. Não fica claro se se trata de uma pintura ou de uma fotografia de arte. As duas colunas de texto nas laterais, em vez de reportagens noticiosas, são críticas elogiosas ao livro. Levamos alguns segundos para perceber a armadilha. 

A intenção do autor David Shields foi justamente essa: desconcertar e desarrumar a cabeça do leitor. Da ironia do título à insolência contundente do texto de apresentação, da cuidadosa seleção das imagens que ilustram sua tese ao impiedoso pos-fácio escrito pelo crítico de arte Dave Hickey, o livro é didático do início ao fim.

Shields, de 59 anos, é o celebrado autor de "A única certeza da vida é que um dia você vai morrer", bem como de outros quinze títulos traduzidos para vinte idiomas. Sua robusta produção abarca vários gêneros e lhe rendeu inúmeros prêmios, além de tê-lo consolidado como um dos mais irrequietos pensadores da literatura americana atual. Professor de escrita criativa no Warren Wilson College, da Carolina do Norte, e escritor residente na Universidade de Washington, ele sempre foi leitor obsessivo do New York Times. 

Apesar de morar em Seattle, na Costa Oeste, a 4,5 mil quilômetros de distância de Manhattan, Shields resistiu à praticidade da leitura on-line e nunca abriu mão de tomar café da manhã lendo seu exemplar em papel. É o tipo de assinante que morre sendo assinante do impresso. Ou melhor, era. 

Ultimamente começara a observar que as imagens da guerra no Iraque e no Afeganistão publicadas no seu jornal preferido lhe causavam mais impacto estético do que emocional. Apreciava-as pela beleza e composição, independentemente do que retratavam, e percebeu que quase sempre glorificavam a guerra e os sacrifícios feitos em seu nome. Assustou-se. "Ou o problema estava na minha cabeça ou na cabeça do Times", pensou. Tomou a si a tarefa de investigar. 

Foi um trabalho insano. 

Primeiro definiu que perscrutaria um período longo — de outubro de 1997 a meados de 2014 — para que a amostra fosse representativa. Depois, contando com a mão de obra de um pelotão de alunos, empilhou os milhares de edições do diário numa sala do porão da faculdade e focou apenas nas imagens de primeira página. Da peneirada inicial, separou 1450 edições para análise mais minuciosa. Da segunda rodada sobraram cerca de mil fotografias específicas, e dessas considerou que setecentas confirmavam o desconforto que o assaltara originalmente: eram belas demais, tanto no conteúdo quanto na forma, para serem representações honestas da realidade. O horror, o inferno, estavam ausentes. 

"Para um jornal que é tido como referência mundial além de primeiro rascunho da história e registro da notícia, isso me pareceu problemático. Precisava ser apontado", explicou à revista Rolling Stone. 

Shields decidiu montar War is Beautiful em cima da tese de que o centenário guardião do Quarto Poder, sinônimo de jornalismo responsável e confiável, faz uma narrativa positiva da guerra através de um fotojornalismo em que vê "toques de pôsteres de recrutamento militar". Por isso, as fotos publicadas são tão digeríveis como cereal do café da manhã. Ele diz:

Em princípio, o jornalismo deve afligir quem está acomodado e confortar quem está aflito, mas o NYT não faz uma coisa nem outra com seu fotojornalismo de guerra. Parece ser sua política institucional selecionar imagens que podem ser emolduradas e penduradas na casa da pessoa. Não têm cheiro nem quentura, não te deixam sem ar, não transmitem nada visceral. Falta o horror. 

Convencido de que era hora de despertar o leitor e arrancá-lo do que ele chama de "letargia opiática nacional", Shields fez uma seleta de 64 imagens do lote das setecentas finalistas e com elas montou seu libelo. Listou dez temas que, a seu ver, resumem a forma como o jornal ilustra o noticiário do envolvimento militar americano no Oriente Médio e os transformou em capítulos ilustrados por fotos de página inteira. Abaixo, uma sinopse dos temas detectados por Shields: 


NATUREZA - fotos que têm a ação militar como habitat e nas quais o papel do soldado é tão glorioso quanto o da natureza 

DIVERSÃO - a guerra, mesmo quando perigosa, retratada como playground para a soldadesca 

PAI - apesar de deslocado para combater em outra cultura, o guerreiro americano oferece proteção e conforto aos nativos em meio ao caos 

DEUS - os militares comandam o globo e tudo está sob controle 

PIETÀ - o retrato da dor e do sofrimento extremos deve ser comedido; histeria, caos e horror estão banidos 

PINTURA - algumas imagens parecem quadros e remetem aos épicos da arte militar que precedeu o invento da fotografia 

CINEMA - efeitos especiais e tecnologia transformam campos da morte em cenário de filme e deletam as carcaças humanas quando elas são americanas 

BELEZA - retratos de mulheres e crianças em busca de salvação; o custo do sacrifício do homem que partiu para a guerra 

AMOR - a proximidade da morte na guerra é uma força que dá sentido à vida 

MORTE - imagens da máquina bélica que segue seu honroso curso

Tais categorias atendem ao propósito do autor, porém são por demais subjetivas e genéricas. Uma foto catalogada como PIETÀ, por exemplo, poderia muito bem constar do capítulo PAI ou PINTURA, enquanto um caso inserido em BELEZA serviria para ilustrar AMOR, e assim por diante. Como se sabe, desde que a fotografia fez sua estreia na Guerra Civil Americana (1861-65) como narradora oficial de conflitos armados, não há guerra no mundo em que esses temas não tenham sido retratados de uma forma ou outra, explorados intencionalmente ou não. A generalização e reducionismo da tese de Shields poderia ter minado o projeto. 

O fato de o livro ser sobre fotografia sem se referir aos mais de quarenta fotojornalistas de guerra que nele figuram também bastaria para levá-lo a pique, por incongruente — afinal, vários desses profissionais são detentores de merecidos prêmios Pulitzer. Mas a relevância de War is Beautiful não está na avaliação da proficiência de quem está com a câmera na mão, e sim na totalidade da cadeia de produção e consumo do retrato da guerra nos Estados Unidos de hoje. 

A obra toca na ferida exposta do jornalismo americano como um todo — aquela que nasceu das cinzas dos atentados terroristas de 2001 às Torres Gêmeas e nunca mais cicatrizou direito. O mérito de David Shields foi ter percebido a anestesia visual com que a ferida tem sido tratada. E explica a contundência do eco com que se acolheu War is Beautiful. 

Além do próprio Milton Glaser — "É difícil fazer as pessoas prestarem atenção no que é invisível", escreveu o artista gráfico —, foram inúmeras as vozes respeitadas que se manifestaram. "Shields nos obriga a sentir nossa cumplicidade em criar a mitologia da guerra", opinou o escritor Lawrence Weschler; "Desde Apocalypse Now não percebia a violência tão bela", acrescentou o romancista William T. Vollmann; "Ninguém gosta de fazer o papel de Dom Quixote contra o New York Times. Shields atacou duas veneráveis instituições: o jornalismo e o governo, num mesmo abraço", complementou o ensaísta Andrei Codrescu; "Jornalismo cinemático perturbador", avaliou Ira Glass, produtor do fenomenal This American Life. 

Para Michelle McNally, há dez anos diretora de fotografia do Times, ninguém deve fazer um juízo da tese de Shields sem analisar os milhares de páginas não representados nas 64 imagens do livro. "Algumas podem ser anódinas, mas outras são desconcertantes", garante ela, e levam editores a ter de explicar escolhas consideradas "insensíveis" e "gratuitas". Cita como exemplo a publicação em julho de 2014, no alto da primeira página, da foto de um cadáver a céu aberto, toscamente encoberto com plástico transparente. Só que aquela imagem não era de guerra (era de uma das vítimas do voo comercial MHI7 abatido quando sobrevoava a Ucrânia), o morto não era americano, e a foto era belíssima, com uma solitária flor escarlate adornando o plástico molhado. Prevalecera o belo.

Nem sempre foi assim. Exatamente seis décadas atrás, numa enlameada trincheira do Vietnã, o fotógrafo Henri Huet da agência Associated Press (AP) viu emergir um GI paramédico com boa parte do rosto coberta por várias camadas de bandagem. Com um olho às cegas, sobrava-lhe uma nesga de visão com o outro olho. Através dessa nesga o jovem paramédico atendia os companheiros feridos da Primeira Divisão de Cavalaria, e Huet fotografou a série que mereceu doze páginas na revista Life e rendeu a ele o Prêmio Robert Capa de 1966. 

Nem na época nem hoje ocorreria a alguém classificar de bela demais nenhuma dessas imagens. Também não viria à mente rotular de PIETÀ ou de qualquer outra coisa além de horror a foto da menina vietnamita nua correndo numa estrada de terra, braços abertos e a pele desfolhada pelo napalm, captada por Nick Ut em 1972. 

Tampouco houve composição ou enquadramento no único frame existente do repentino disparo do chefe de polícia de Saigon (hoje Ho Chi Minh) contra a têmpora de um vietcongue que acabara de ser detido. Eddie Adams, veterano da Guerra da Coreia, fotografava uma corriqueira operação de caça a infiltrados comunistas no Sul e por força de hábito acompanhou o movimento de braço do policial ao ver que ele desembainhara a pistola. Jamais imaginou que dali sairia o célebre tiro à queima-roupa sem aviso prévio. Nem sequer sabia o que captara — aqueles eram tempos anteriores à câmera digital. Retornou ao escritório da AP, entregou o material para ser processado, pegou novo lote de filmes virgens e voltou às ruas. Somente à noite pôde ver a imagem que lhe valeu o Pulitzer de 1966 e acordou o público americano para o lado menos nobre da guerra no Sudeste Asiático. 

A liberdade concedida a repórteres e fotojornalistas no Vietnã foi sem precedentes. Não havia censura de espécie alguma, e o acesso físico ao campo de batalha, com cada um assumindo seus riscos, jamais se repetiria. Isso resultou numa cobertura ímpar cujo nível de qualidade, densidade e realismo quase apocalíptico custou caro — 75 profissionais, entre os melhores de toda uma geração, morreram naquele infernal campo de trabalho. 

Eles se tornaram referências, viraram mitos. Dos mais de 1,6 mil títulos já publicados nos Estados Unidos sobre a Guerra do Vietnã, perto de 150 se referem à fotografia no conflito. Basta pegar um único trabalho, o magistral Vietnam, The Real War, a Photographic History by the Associated Press, para qualquer amador perceber por que as fotos daquele período se grudaram na consciência dos americanos e alteraram o curso da guerra. 

Desde então, novas levas de profissionais foram despachadas a campo, talvez pensando-se em emular e honrar o modelo de cobertura do Vietnã. Missão impossível: as guerras e suas regras hoje são outras, a nação americana, suas instituições e imprensa também. 

Como sustenta Dave Hickey no posfácio, as coberturas de guerra retornaram à estética de peças para museus, de arquivos da história da arte. "São composições esvaziadas de densidade, de realidade, de vida na morte." 

A cobrança, naturalmente, não é por fotos fora de foco, "sujas", mal iluminadas e com enquadramento apressado ou encharcadas de sangue e em ricto de dor. Excesso de drama também anestesia. Leitores de jornal do mundo inteiro só despertaram para a brutalidade do êxodo dos refugiados de 2015 ao verem uma foto plácida em meio à avalanche diária de imagens do horror coletivo. Ela chamou atenção por ter "vida na morte": mostrava o corpo do menino Aylan, de três anos, à beira do mar numa praia turca. Poderia estar adormecido se não estivesse morto. 

Vale lembrar que a foto de autoria de Nilüfer Demir, da agência Dogan, tornou-se virai graças ao trabalho de com-partilhamento iniciado por Peter Bouckaert, da Human Rights Watch. Foi por pressão incontornável das mídias sociais que a imagem de Aylan se converteu em símbolo de tantas crianças refugiadas perdidas no Mediterrâneo. Hugh Pinney, vice-presi-dente da Getty Images, sustenta: 


O motivo pelo qual ainda hoje se fala tanto dessa foto não é pelas circunstâncias em que ela foi feita nem por ter se tornado vira!, mas pelo fato de ter sido publicada na grande imprensa. Um tabu de décadas foi quebrado. Ao ser jogada nas redes sociais por iniciativa individual de algumas pessoas, deu à grande imprensa a coragem e a convicção de fazer o mesmo. 

A higienização do fotojornalismo e da cobertura de guer-ra ocorrida nos Estados Unidos após o Onze de Setembro foi, de fato, radical. De forma consciente ou não e com poucas ex-ceções, a indústria da comunicação, assim como a nação, aderiu ao espírito do fatídico parágrafo único de sessenta palavras mais danoso da história moderna americana: a Autorização para o Uso de Força Militar (AUMF na sigla em inglês), instrumento que estabeleceu o fundamento legal para o presidente George W. Bush desencadear a "guerra ao terror" e justificar as invasões de países feitas em nome dela. 

Bill Kovach, ex-curador da Fundação Nieman de jornalismo, acredita que "o estado emocional da sociedade após o Onze de Setembro induziu a mídia a relutar em ir contra a maré". Greg Dyke, então diretor-geral da BBC, declarou-se chocado com a maneira dócil como o noticiário televisivo da invasão do Iraque era formatado para a audiência americana, em comparação com o que o público europeu via. A decisão do Pentágono de incorporar, ou embed, como a prática passou a ser chamada, mais de seiscentos repórteres e fotógrafos às suas tropas para ver a guerra de perto foi um golpe de mestre. Na Segunda Guerra Mundial, Robert Capa, Lee Miller, David Douglas Duncan e tantos outros também trabalharam embedded. Mas, apesar de vestirem o uniforme dos Estados Unidos, e o fizeram com gosto, apenas a censura contra o inimigo nazista limitou seu trabalho, não normas de higienização de imagens. 

Já para as primeiras levas de embedded nas guerras dos Estados Unidos no século XXI as regras eram outras. A começar pela proibição de fotografar membros das forças armadas mortos, gravemente feridos ou executando civis. Em contrapartida, o povo americano podia assistir de casa, de camarote e em tempo real, às operações, dada a abundância de repórteres e fotógrafos que acompanhavam as tropas de assalto. Só mais tarde se percebeu que derrotar as surradas forças de Saddam Hussein foi a parte mais fácil. Faltou, e falta até hoje, garantir o day after. 

Como escreveu na época Murrey Marder, o fundador do Projeto Nieman de Vigilância da Imprensa, o que a mídia atrelada às tropas via e relatava dependia das unidades às quais estava anexada. Estar integrado em unidades avançadas numa frente de combate é o sonho de todo repórter. "Mas cabe ao repórter, ao fotojornalista e a seu editor decidir como melhor transformar esse sonho numa cobertura útil", alertava Marder. Em entrevista à rede pública de televisão C-Span, um general da reserva chegou a definir assim a situação: "O Pentágono transformou a mídia em arma". Arma de propaganda gratuita. 

No fundo, o libelo de War Beautiful é voltado sobretudo para a retaguarda do trabalho dos profissionais em campo. A saber, os editores nas redações e os consumidores do produto final, que preferiram ser anestesiados com imagens de valentia, honradez e propósito de guerras sem fim que o país preferiria esquecer. Daí a investigação lúcida de Shields na insalubre triangulação entre violência, estética e política. 

Não faltam levantamentos paralelos sobre o notável esforço dos fotojornalistas embedded que contornaram a camisa de força e se arriscaram a retratar a guerra em toda a sua toxicidade. Mas essa é a bibliografia convencional. 

O trabalho de Shields é fora da curva. E, para quem não tem acesso a seu livro, faz-se aqui a narrativa de um episódio que, embora não conste de War Beautiful, ilustra de forma cristalina a tese do autor. 

A cena se passa num início de noite de janeiro de 2005 em Tal Afar, cidade do norte do Iraque ocupada por tropas dos Estados Unidos, hoje em mãos dos jihadistas do Estado Islâmico. Um pelotão de cerca de vinte homens da Companhia Apache patrulha a pé o centro da cidade esvaziada pelo toque de recolher. Vestem uniforme de camuflagem e caminham por um bulevar sem iluminação. À distância, um solitário carro se aproxima. Tiros de alerta são disparados, mas o carro não para e é imediatamente engolido por disparos do pelotão inteiro. Quando os soldados chegam perto do veículo imobilizado e abrem a porta traseira, seis crianças pequenas deságuam do interior, uma com ferimentos graves no abdome. No banco da frente, dois adultos — o pai e a mãe — estão mortos, perfurados de balas. 

A família voltava do hospital local, onde fora visitar outro filho, doente. Todos tinham agido segundo o instinto de sobrevivência de cada um. Para aquele pai com mulher e crianças a bordo, o mais sensato era só parar quando chegassem em casa. A noite estava cerrada demais para que pudesse perceber a presença da patrulha ou saber que ali havia um posto de controle. Além disso, entre os tiros de aviso e as rajadas letais o tempo fora insuficiente para ele poder reagir. E, mesmo que ouvisse, seu primeiro instinto seria continuar dirigindo e sair da linha de tiro. Os soldados, por seu lado, agiram segundo as regras de procedimento em combate definidas pelo comando. Nada tinham a esconder. Milhares de militares americanos já haviam morrido ou sofrido amputação por terem sido vítimas de carros-bomba conduzidos por militantes suicidas. Fora um acidente a mais, terrível mas compreensível dadas as circunstâncias, devidamente investigado e arquivado. 

Com uma diferença: na patrulha daquela noite estava um repórter fotográfico embedded, o veterano Chris Hondros, da agência Getty. Apesar da total escuridão, do absoluto inesperado da cena e do caos reinante, Hondros captou o episódio inteiro procurando não demonstrar afoiteza. Nada perguntou no trajeto de volta à base. 

Mal chegaram, foi chamado a apresentar-se ao major no comando, que o orientou a não transmitir nenhuma foto até a conclusão da investigação dos fatos daquela noite. Hondros respondeu que consultaria a chefia da agência Getty, e saiu correndo para o seu trailer — queria conferir se conseguira capturar a imagem em meio a escuridão da cena. Sabia que os militares, se quisessem, podiam obstruir toda a comunicação na base e confiscar-lhe o celular. Por isso, ao constatar que o material colhido resultara em imagens ricas em informação, não hesitou: transmitiu de imediato tudo o que tinha, dessa vez afoito. 

Apenas recomendou por escrito que seu chefe se entendesse com o major antes de disponibilizar o material para jornais de todo o mundo. Mas falhas de comunicação acontecem, às vezes para o bem. Quando o chefe de Hondros entrou em contato com a base em Tal Afar, o major já tinha ido dormir. O capitão que o substituíra entendeu errado a negociação e na manhã seguinte a foto da menina Samar Hassan, de cinco anos, salpicada de sangue, e um grito de socorro a ecoar estava nas primeiras páginas de jornais mundo afora menos na do New York Times. 

Passam-se seis anos. 

Somente na edição de 7 de maio de 20115 a principal foto de primeira página do matutino mostra Samar. Ela está sentada num sofá, envolta num bonito vestido sem adornos. Tornara-se uma tímida adolescente de doze anos, e estava sendo entrevistada pelo Times em condição mais edificante. Morava em Mosul com o que restava da família. Abaixo da foto apaziguadora, em tamanho bem menor e com seis anos de atraso, o flagrante da fuzilaria que fizera dela o símbolo do custo civil e da destruição de um país. "Eu deveria ter produzido este livro dez anos atrás. Hoje ele chega um pouco atrasado. Ainda assim, espero que as pessoas, inclusive eu, aprendam como é fácil nos tornarmos cordeiros de um abatedouro, o abatedouro da propaganda da guerra", conclui David Shields. 

Fevereiro de 2016

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