quinta-feira, 10 de julho de 2014

Memórias do Cárcere, por Florestan Fernandes


Memórias do Cárcere, por Florestan Fernandes
Publicado em 20 de agosto de 1984

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo em 08 de agosto de 1984
Agradecimento especial à professora Ieda Lebensztayn pela localização deste artigo

Há quantos anos li Memórias do cárcere? Não me lembro. Não seria preciso ter vivido sob o inferno do Estado Novo para sofrer o impacto da grandeza daquele livro, que vincula a criação artística exemplar à ira moral e política mais consequente. Os que falam de “literatura crítica” e de “arte engajada” quase sempre permanecem na periferia dos símbolos e na superfície da luta política. Graciliano Ramos travou o combate ao nível mais profundo da defesa da dignidade do eu e da condenação irretratável do despotismo institucionalizado. Temperamento e circunstâncias acenderam a chama do intelectual revoltado, gerando-se assim a única obra de denúncia integral e de desmascaramento completo existente em nossa literatura.

Não voltei a ler o livro. Nem agora, que senti um ímpeto irrefreável de incentivar os leitores a não perderem a sua transposição cinematográfica. O vigor do livro, na minha memória, prende-se à revolta íntima, ao afã de denunciar e de desmascarar além e acima dos limites do inconformismo ideológico e político, de buscar uma objetividade tão intransigente e penetrante que nos lembra a verdadeira ciência, no sentido de Marx. Ao sobrepujar seu rancor e as humilhações sofridas, o intelectual descobre o significado da prisão e da violência que imperam em toda a sociedade brasileira, de modo a identificar o microcosmo dentro do qual fora lançado como o limite mais brutalizado e esquecido do todo, mas, ao mesmo tempo, o mais expressivo e revelador. De um golpe, o Estado Novo e as várias franjas psicológicas, policiais, militares ou políticas da opressão mostravam-se no que eram, em sua realidade histórica específica e nas projeções que a soldavam ao passado escravista e colonial mais ou menos remoto e recente, ou seja, em sua realidade histórica “estrutural”.

Em um país no qual a descolonização foi confundida com a troca de guarda na casa reinante e com a monopolização do poder pelos estratos dominantes dos estamentos senhoriais, Memórias do cárcere balizava-me o aparecimento de uma nova consciência política da realidade nacional e de uma repulsa ao conformismo típica dos movimentos de rebelião, que iriam engravidar a história das nações proletárias. Constituía uma dificílima tarefa criadora transpor para a linguagem do cinema um livro como esse, que comoveu a Nação mas permaneceu ignorado pelos estudiosos do Brasil na sua perspectiva original mais elucidativa e provocadora, em ruptura com a “história oficial” e, especialmente, com as várias modalidades então existentes de “sociologia de gabinete” e de “ciência social acadêmica”. Pela segunda vez um escritor escrevia uma obra-prima dentro do seu métier (se se tomam Os sertões como paralelo), só que, agora, o produto transcendia à ordem existente como um todo e a punha em xeque. O cinema poderia responder dialeticamente a essa realização?

Só assisti uma vez ao filme de Nélson Pereira dos Santos e seus colaboradores (entre os quais a competência dos técnicos nada fica a dever à excelência dos atores). A impressão que me ficou, corroborada por uma longa reflexão crítica, levou-me à certeza de uma correspondência dialética efetiva. O filme opera com os três níveis do livro: o psicológico e da memória propriamente dita, que focaliza as ocorrências do dia a dia; o dos acontecimentos, no qual a história também se objetiva através da memória e da experiência direta com a realidade do Estado brutal, chocante e repulsivo, retrato da sociedade de que fazia parte e daqueles que a comandavam, para os quais ele constituía uma necessidade política; o da “repetição da história”, parcialmente visível através de ocorrências do cotidiano e dos acontecimentos, mas em sua maior parte matéria da análise crítica desmascaradora, pela qual a brutalização e bestialização do homem refletiam como a ditadura se incluía em uma cadeia de continuidades, que faziam do presente um espelho fiel do passado oligárquico, do passado escravista neocolonial e do passado escravista colonial, pretensamente desaparecidos. O que é preciso assinalar: o filme faz tudo isso pelas vias próprias do cinema, sem parasitar no talento de Graciliano Ramos e sem mimetizar o portentoso quadro de referências obrigatório.

Memórias do cárcere, na versão cinematográfica, explora mais desenvoltamente a linguagem artística e as possibilidades que estão ao alcance do cinema de fragmentar a realidade para, em seguida, recompor o concreto nos diversos níveis em que ele aparece na percepção, na cabeça e na história dos homens. Quem ama o livro por ele mesmo não vai recuperá-lo no filme. Quem ama as várias verdades que Graciliano Ramos enfrentou com hombridade e coragem, irá ver no filme uma engenhosa e íntegra transposição do livro. Seria pouco dizer que ambos se completam. Nélson Pereira do Santos explora a técnica cinematográfica como Graciliano Ramos a técnica literária, como recurso de descoberta da verdade, arma de denúncia intelectual e instrumento de luta política.

Como a “sua” situação histórica é datada de hoje, o alvo imediato é, naturalmente, a ditadura atual e as condições que lhe conferem uma substância colonial inocultável. Esse é o aspecto por assim dizer genial do filme. A atualidade das Memórias do cárcere não poderia estar em algo exterior, como o “acaso” de uma ditadura ainda mais racional no uso da corrupção, da opressão e da violência institucionalizadas. Portanto, terminar o filme com as sequências que foram escolhidas para esse fim representa uma solução magistral, que confere ao filme o mesmo sentido intelectual, moral e político do livro, a mesma força de uma indignação avassaladora. O que poderia ser ou parecer um presente extinto converte-se, afinal, em presente vivo e vivido com sofrimento, vergonha, desespero e revolta. Em suma, ele se evidencia como um presente colonial, que não desaparecerá por si só ou por uma impossível ação redentora dos que tecem as continuidades do despotismo. Sair das prisões não é vencer as ditaduras. Para acabar com elas, no solo histórico da América Latina, seria preciso destruir o arcabouço colonial no qual elas se assentam e lhes dão a maligna capacidade de sobreviver aos que elas aprisionam e libertam…

Fernandes, Florestan. “Memórias do cárcere”. Folha de S.Paulo, São Paulo, 20 ago. 1984, p. 3.

Florestan Fernandes: sociólogo, ex-professor catedrático do Departamento de Ciências Sociais da USP e docente da PUC-SP. Autor de vasta obra sociológica.

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