terça-feira, 3 de junho de 2014

O lucro ou as pessoas? NEOLIBERALISMO E ORDEM GLOBAL


NEOLIBERALISMO E ORDEM GLOBAL

Gostaria, primeiramente, de discutir cada um dos tópicos mencionados no título: Neoliberalismo e Ordem Global. São problemas de grande significado humano, mas ainda pouco compreendidos. Para abordá-los com rigor, devemos começar por distinguir a doutrina da realidade. Muitas vezes descobrimos que há entre elas uma considerável distância.

O termo neoliberalismo sugere um sistema de princípios que, ao mesmo tempo em que é novo, baseia-se em idéias liberais clássicas: Adam Smith é o seu reverenciado santo padroeiro. Esse sistema doutrinário é também conhecido como Consenso de Washington, expressão que sugere algo a respeito da ordem global. Um exame mais atento revela que a sugestão sobre a ordem é bastante precisa, mas o resto, não. Essas doutrinas não são novas, e seus pressupostos básicos estão muito distantes daqueles que animaram a tradição liberal desde o Iluminismo.

O CONSENSO DE WASHINGTON 

O Consenso [neoliberal] de Washington é um conjunto de princípios orientados para o mercado, traçados pelo governo dos Estados Unidos e pelas instituições financeiras internacionais que ele controla e por eles mesmos implementados de formas diversas – geralmente, nas sociedades mais vulneráveis, como rígidos programas de ajuste estrutural. Resumidamente, as suas regras básicas são: liberalização do mercado e do sistema financeiro, fixação dos preços pelo mercado (“ajuste de preços”), fim da inflação (“estabilidade macroeconômica”) e privatização. Os governos devem “ficar fora do caminho” – portanto, também a população, se o governo for democrático –, embora essa conclusão permaneça implícita. As decisões daqueles que impõem o “consenso” têm, é claro, um grande impacto sobre a ordem global. Alguns analistas assumem uma posição ainda mais incisiva. A imprensa de negócios internacional se referiu a essas instituições como o núcleo de um “governo mundial de fato” de uma “nova era imperial”.

Precisa ou não, essa descrição serve para nos lembrar de que as instituições governantes não são agentes independentes, mas refletem a distribuição de poder existente na sociedade em geral. 

Isso é truísmo pelo menos desde Adam Smith, para quem, na Inglaterra, “os grandes arquitetos” de políticas eram “os comerciantes e manufatores”, que punham o poder do Estado a serviço de seus próprios interesses, por mais “penosos” que fossem os resultados dessa prática sobre a população, incluindo a inglesa. Smith estava interessado na “riqueza das nações”, mas entendia que o “interesse nacional” é, em grande parte, uma ilusão: no interior da “nação” existem agudos conflitos de interesse, de modo que para se compreender a política e seus efeitos é preciso saber com quem está o poder e como é exercido, assunto que mais tarde veio a ser denominado “análise de classes”.

Os “grandes arquitetos” do Consenso [neoliberal] de Washington são os senhores da economia privada, em geral empresas gigantescas que controlam a maior parte da economia internacional e têm meios de ditar a formulação de políticas e a estruturação do pensamento e da opinião. Os Estados Unidos têm um papel especial nesse sistema, por razões óbvias. Nas palavras de Gerald Haines, especialista em história da diplomacia e antigo historiador da CIA: “Depois da 2ª Grande Guerra, os Estados Unidos assumiram, por interesse próprio, a responsabilidade pela prosperidade do sistema capitalista mundial”. O foco de Haines é o que chama de “americanização do Brasil”, mas apenas como caso particular. E suas palavras são bastante exatas.

Os Estados Unidos já eram a maior economia do planeta desde muito antes da 2ª Grande Guerra, durante a qual prosperou, enquanto seus rivais se enfraqueciam enormemente. A economia de guerra coordenada pelo Estado conseguiu, ao final, superar a Grande Depressão. No fim da guerra, os Estados Unidos detinham a metade da riqueza do planeta e uma posição de poder sem precedentes na história. Os grandes arquitetos de políticas trataram, é claro, de usar esse poder para criar um sistema global que viesse ao encontro de seus interesses.

Documentos de alto nível descrevem a principal ameaça a esses interesses, particularmente na América Latina, como sendo os “regimes nacionalistas” e “radicais” sensíveis à pressão popular pela “melhoria imediata do baixo nível de vida das massas” e por um desenvolvimento voltado ao atendimento das necessidades do país. Essas tendências conflitam com a exigência de “um clima político e econômico propício para o investimento privado”, com a adequada repatriação dos lucros e a “proteção de nossas matérias-primas” – nossas, ainda que localizadas em outro país. Por essa razão, o influente planejador George Kennan nos aconselhou a “parar de falar de objetivos vagos e pouco realistas como os direitos humanos, a elevação do nível de vida e a democratização”, e a “tratar de usar conceitos claros de poder”, “desembaraçados de frases idealistas” sobre “o altruísmo e a beneficência mundial” – ainda que tais expressões sejam perfeitas, até obrigatórias, nos discursos públicos.

Estou citando documentos secretos agora disponíveis, em princípio, mas quase totalmente desconhecidos do grande público e da comunidade intelectual.

O “nacionalismo radical” é por si só intolerável, mas constitui além disso uma “ameaça à estabilidade”, outra expressão que tem um significado especial. Quando Washington se preparava para derrubar o primeiro governo democraticamente eleito da Guatemala, em 1954, um funcionário do Departamento de Estado advertiu que a Guatemala “se tornara uma ameaça crescente à estabilidade de Honduras e El Salvador. Sua reforma agrária é uma poderosa arma de propaganda; seu abrangente programa social de ajuda aos operários e camponeses na luta vitoriosa contra as classes mais altas e as grandes companhias estrangeiras tem um forte apelo sobre as populações de seus vizinhos centro-americanos, onde as condições são semelhantes”. “Estabilidade” quer dizer segurança para “as classes mais altas e as grandes companhias estrangeiras”, cuja prosperidade deve ser preservada.

Tais ameaças à “prosperidade do sistema capitalista mundial” justificam o uso do terror e da subversão para a restauração da “estabilidade”. Uma das primeiras tarefas da CIA foi uma operação de larga escala para minar a democracia italiana em 1948, quando se temeu que o resultado eleitoral pudesse dar errado; planejou-se uma intervenção militar direta para o caso de falhar a subversão. Essa operação foi descrita como destinada a “estabilizar a Itália”. Pode-se até “desestabilizar” para alcançar a “estabilidade”. Assim, o editor do jornal semi-oficial Foreign Affairs explica que Washington precisava “desestabilizar um governo marxista livremente eleito no Chile”, porque “estávamos determinados a buscar a estabilidade”. Com uma formação adequada, pode-se superar essa aparente contradição.

Os regimes nacionalistas que ameaçam a “estabilidade” são chamados de “maçãs podres” que ameaçam “estragar a caixa inteira” e de “vírus” que podem “infectar” outros países. A Itália de 1948 é um exemplo. Vinte e cinco anos depois, Henry Kissinger descreveu o Chile como um “vírus” capaz de enviar sinais equivocados sobre a possibilidade de mudanças sociais, contaminando países distantes como a Itália, ainda “instável” mesmo após anos e anos de atividades da CIA para subverter a democracia no país. Os vírus têm de ser destruídos, e os demais países, protegidos da infecção: em ambos os casos, a violência costuma ser o meio mais eficiente, deixando atrás de si um rastro de morte, terror, tortura e destruição.

No planejamento secreto do pós-guerra, foi atribuído a cada região do globo um papel específico. A “função primordial” do sudeste da Ásia era fornecer matéria-prima para as potências industriais. A África seria “explorada” em benefício da recuperação econômica da Europa. E assim por diante, no mundo inteiro.

Na América Latina, Washington pretendia implementar a Doutrina Monroe, porém de um modo muito especial, uma vez mais. O presidente Wilson, famoso por seu idealismo e seus elevados princípios morais, admitiu secretamente que, “ao defender a Doutrina Monroe, os Estados Unidos levam em conta os seus próprios interesses”. Os interesses dos povos latino-americanos são meramente “incidentais” e não um problema nosso. Ele reconheceu que “pode parecer que nos baseamos em puro egoísmo”, mas afirmou que “a doutrina não tem motivos mais elevados ou generosos”. Os Estados Unidos lutaram para desalojar a Inglaterra e a França, seus rivais tradicionais, e estabelecer uma aliança regional sob seu controle à parte do sistema mundial, onde tais arranjos não eram admissíveis.

As “funções” da América Latina foram esclarecidas numa conferência hemisférica, em fevereiro de 1945, na qual Washington propôs uma “Carta Econômica das Américas” que eliminaria o nacionalismo econômico “sob todas as suas formas”. Os planejadores de Washington sabiam que não seria fácil impor um tal princípio. Documentos do Departamento de Estado advertiram que os latino americanos preferem “políticas destinadas a promover uma melhor distribuição da riqueza e a elevar o nível de vida das massas” e estão “convencidos de que o maior beneficiário do desenvolvimento dos recursos de um país deve ser o povo do próprio país”. Tais idéias são inaceitáveis: os “maiores beneficiários” dos recursos de um país são os investidores norte-americanos, e a América Latina deve cumprir a sua função de serviço sem preocupações irracionais com o bem-estar geral ou com um “desenvolvimento industrial excessivo” que possa prejudicar os interesses dos Estados Unidos.

A posição dos Estados Unidos prevaleceu nos anos seguintes, ainda que com uma série de problemas que foram enfrentados com meios que não preciso mencionar. Quando a Europa e o Japão se recuperaram da devastação causada pela guerra, a ordem mundial assumiu um padrão tripolar. Os Estados Unidos mantiveram a sua posição dominante, apesar dos novos desafios que surgiam, entre eles a concorrência européia e leste asiática na América do Sul. As mudanças mais importantes aconteceram há vinte e cinco anos, quando o governo Nixon desmantelou o sistema econômico global do pós-guerra, no qual os Estados Unidos eram, na verdade, o banqueiro do mundo, papel que não podiam mais sustentar. Esse ato unilateral (que contou, é certo, com a colaboração das demais potências) levou a uma enorme expansão dos fluxos de capitais não regulados. Ainda mais notável foi a mudança na composição desses fluxos. Em 1971, 90 por cento das transações financeiras internacionais tinham alguma relação com a economia real – comércio e investimentos de longo prazo – e 10 por cento eram especulativas. Em 1990, essa proporção se inverteu e, por volta de 1995, cerca de 95 por cento de um valor total imensamente maior era de natureza especulativa, com fluxos diários que geralmente excediam as reservas em moeda estrangeira das sete maiores potências industriais somadas, ou seja, mais de um trilhão de dólares, por dia, a curtíssimo prazo: cerca de 80 por cento com prazo de resgate de uma semana ou menos.

Economistas eminentes alertaram, há mais de vinte anos, que esse processo conduziria a uma economia de baixo crescimento e baixos salários, sugerindo medidas bastante simples para evitá-lo.

Mas os grandes arquitetos do Consenso de Washington optaram pelos efeitos previsíveis, que incluem lucros elevadíssimos. Esses efeitos foram ampliados pela alta violenta (de curto prazo) do preço do petróleo e pela revolução das telecomunicações, ambos relacionados a um gigantesco setor estatal da economia americana do qual falarei mais adiante.

Os Estados ditos “comunistas” estavam fora desse sistema global. Na década de 1970, a China estava sendo reintegrada. A economia soviética começou a estagnar na década de 1960; vinte anos depois, a totalidade do edifício apodrecido veio abaixo. A região está retomando à sua situação anterior. Setores que faziam parte do mundo ocidental estão retornando a ele, mas a maior parte da região está voltando à sua função de serviço tradicional, quase sempre sob a égide de ex-burocratas comunistas e sócios locais de empresas estrangeiras, para não falar do crime organizado. Trata-se de um modelo conhecido no Terceiro Mundo, assim como os seus resultados. Uma pesquisa da UNICEF realizada em 1993 estimou um incremento, somente na Rússia, de meio milhão de mortes anuais como conseqüência das “reformas” neoliberais, que tinham o apoio geral. O ministério russo da ação social estimou recentemente que 25 por cento da população caiu abaixo dos níveis mínimos de subsistência, ao passo que os novos dirigentes adquiriram enormes fortunas, outra vez o velho padrão das semicolônias ocidentais.

São também conhecidos os efeitos da violência em larga escala utilizada para assegurar a “prosperidade do sistema capitalista mundial”. Uma recente conferência jesuítica em San Salvador assinalou que, com o decorrer do tempo, a “cultura do terror acabou por domesticar as expectativas da maioria”. As pessoas talvez nem pensem mais em “alternativas diferentes das apresentadas pelos poderosos”, para os quais isto é uma grande vitória da liberdade e da democracia.

Esses são alguns contornos da ordem global na qual foi forjado o Consenso de Washington.

A NOVIDADE DO NEOLIBERALISMO

Vejamos mais de perto a novidade do neoliberalismo. Um bom lugar para começar é uma recente publicação do Royal Institute of International Affairs, de Londres, que traz importantes artigos sobre problemas políticos e estratégicos. Um deles trata da economia do desenvolvimento. O autor, Paul Krugman, é um conhecido especialista no assunto. Ele destaca cinco pontos principais diretamente relacionados com o nosso tema.

Em primeiro lugar, o conhecimento acerca do desenvolvimento econômico é muito limitado. Nos Estados Unidos, por exemplo, dois terços do crescimento da renda per capita continuam sem explicação. Da mesma forma, observa Krugman, a história dos sucessos asiáticos percorreu caminhos que com certeza não condizem com o que “a ortodoxia corrente diz ser a chave para o crescimento”. Ele recomenda “humildade” na formulação de políticas e cautela em relação às “grandes generalizações”.

Segundo, continuamente se tiram conclusões pouco fundamentadas que dão suporte doutrinário para a formulação de políticas: o Consenso de Washington é um caso.

Terceiro, o “saber convencional” é instável e com frequência se transforma em outra coisa, quem sabe o oposto da última fase, o que não diminui a renovada confiança de seus proponentes na aplicação da nova ortodoxia.

Quarto, geralmente se reconhece a posteriori que as políticas de desenvolvimento econômico não “serviram aos objetivos anunciados” e estavam baseadas em “más ideias”.

Finalmente, diz Krugman, costuma-se “dizer que as más ideias florescem porque atendem aos interesses de grupos poderosos. Não há dúvida de que tal coisa acontece”.

Esse acontecer é um lugar-comum, pelo menos desde os tempos de Adam Smith. E acontece com impressionante regularidade, mesmo nos países ricos, embora venham do Terceiro Mundo os relatos mais cruéis.

Essa é a essência do problema. As “más ideias” podem não servir aos “objetivos expressos”, mas geralmente acabam se revelando ótimas para os seus grandes arquitetos. Foram muitas as experiências de desenvolvimento econômico na era moderna, com regularidades difíceis de ignorar. Uma delas é que os sujeitos da experiência costumam se sair muito bem, ao passo que os objetos quase sempre saem perdendo.

A primeira grande experiência foi levada a cabo há duzentos anos, quando o governo britânico da Índia instituiu a “Colonização Permanente”, que iria produzir coisas assombrosas. Uma comissão especial analisou seus resultados quarenta anos depois, concluindo que “a colonização, concebida com tanto cuidado e ponderação, infelizmente submeteu as classes baixas à mais penosa opressão”, deixando atrás de si “as ossadas dos tecelões [que] branqueiam as planícies da Índia” e uma miséria que “não há de encontrar paralelo na história do comércio”.

Mas essa experiência dificilmente pode ser classificada como um fracasso. O governador-geral britânico observou na ocasião que “a ‘Colonização Permanente’, embora tenha fracassado em muitos aspectos essenciais, teve ao menos o mérito de haver criado uma vasta classe de ricos proprietários de terras movidos por um profundo interesse na continuação do Domínio Britânico e que têm total controle sobre a massa do povo”. Outro mérito foi o de ter proporcionado grandes riquezas aos investidores britânicos. A Índia financiou 40 por cento do déficit comercial da Grã-Bretanha, ao mesmo tempo em que forneceu um mercado cativo para suas exportações de manufaturados, trabalhadores por empreitada para as possessões britânicas em substituição às antigas populações escravas, e o ópio, que foi o principal produto de exportação britânico para a China. O comércio do ópio foi imposto à China pela força e não pelo “livre mercado”, da mesma forma como os sagrados princípios do mercado foram esquecidos quando a importação do ópio foi proibida na Inglaterra.

Em suma, a primeira grande experiência de desenvolvimento econômico foi uma “má ideia” para os governados, mas não para os seus criadores e para as elites locais a eles associadas. Esse padrão se mantém até hoje: coloca-se o lucro acima das pessoas. A consistência dessa crônica não é menos impressionante do que a retórica que aclama como “milagre econômico” a mais recente vitrina da democracia e do capitalismo e do que essa retórica geralmente esconde. O Brasil, por exemplo. Na elogiadíssima história da americanização do Brasil antes mencionada, Gerald Haines diz que os Estados Unidos vêm usando o Brasil desde 1945 como “área de teste para os modernos métodos científicos de desenvolvimento industrial baseado no capitalismo intensivo”. Essa experiência foi levada a cabo “com a melhor das intenções”. Os investidores estrangeiros se beneficiaram, mas os planejadores “acreditavam sinceramente” que o povo brasileiro também se beneficiaria. Não é necessário explicar como foi que se beneficiaram ao tornar o Brasil “a menina dos olhos da comunidade internacional de negócios na América Latina” sob o governo militar nas palavras dos jornais de negócios –, enquanto o Banco Mundial relatava que dois terços da população não se alimentavam o bastante para suportar uma atividade física normal.

Em seu texto de 1989, Haines classificou a “política norte-americana para o Brasil” como “extremamente bem-sucedida”, “uma verdadeira história de sucesso americano”. O ano de 1989 foi um “ano de ouro” aos olhos do mundo dos negócios, com lucros triplicados em relação a 1988 e uma redução de cerca de 20 por cento nos salários industriais, que já figuravam entre os mais baixos do mundo; a classificação do Brasil no Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano estava próxima à da Albânia. Quando o desastre começou a atingir os ricos, os “modernos métodos científicos de desenvolvimento baseado no capitalismo intensivo” (Haines) se transformaram de uma hora para outra em prova dos males do estatismo e do socialismo outra transição rápida que ocorre sempre que necessário.

Para apreciar esse avanço, devemos nos lembrar de que o Brasil há muito é reconhecidamente um dos países mais ricos do mundo, dotado de enormes vantagens, até mesmo meio século de influência e tutela dos Estados Unidos, que, com a melhor das intenções, por acaso estão uma vez mais a serviço do lucro da minoria, enquanto a maioria do povo é deixada na miséria.

O exemplo mais recente é o México, louvado como o primeiro aluno das regras do Consenso de Washington e apontado como modelo para os demais – enquanto os salários despencavam, a pobreza aumentava quase tão depressa quanto o número de bilionários e o capital estrangeiro afluía (a maior parte dele especulativa ou destinada à exploração da mão-de-obra barata mantida sob controle por uma “democracia” brutal). Também ficou conhecido o colapso desse castelo de cartas em dezembro de 1994. Hoje, metade da população não atinge os níveis alimentares mínimos, ao passo que o homem que controla o mercado de grãos permanece na lista dos bilionários mexicanos, categoria na qual o país exibe uma elevadíssima posição.

As mudanças na ordem global trouxeram também a aplicação de uma versão do Consenso de Washington dentro dos próprios Estados Unidos. Há quinze anos os salários da maioria da população vêm estagnando ou diminuindo, assim como as condições de trabalho e de segurança no emprego, quadro que se mantém apesar da recuperação da economia – um fenômeno sem precedente. A desigualdade atingiu níveis desconhecidos nos últimos setenta anos, muito superiores aos de outras nações industrializadas. Os Estados Unidos têm os mais elevados índices de pobreza infantil dentre todas as sociedades industriais, seguidos pelo resto do mundo de língua inglesa. E os índices vão percorrendo a conhecida lista de males do Terceiro Mundo. Enquanto isso, os jornais de negócios não conseguem encontrar adjetivos suficientemente exuberantes para descrever o crescimento “estonteante”, “espetacular”, dos lucros, embora admitam que os ricos também se defrontam com problemas: um título de Business Week anuncia O Problema Agora: O que Fazer com Tanto Dinheiro, pois a “expansão dos lucros” faz “transbordar os cofres da América das sociedades anônimas” e multiplicar os dividendos.

Os lucros continuavam sendo “espetaculares” em meados de 1996, com um “notável” crescimento nas maiores empresas do mundo, apesar de haver “uma área onde as companhias globais não se estão expandindo muito: as folhas de pagamento”, acrescenta sem muito alarde a mais importante revista mensal de negócios. Essa exceção inclui empresas que “tiveram um ano espetacular”, com “lucros em rápida ascensão” e economia de força de trabalho, substituída por trabalhadores temporários sem direitos nem garantias trabalhistas, ou seja, o comportamento que se poderia esperar de “quinze anos de clara subjugação do trabalho pelo capital”, para usar outra frase do jornalismo de negócios.

COMO OS PAÍSES SE DESENVOLVEM

Vejamos outras lições da história. No século 18, as diferenças entre o Primeiro e o Terceiro Mundos eram muito menos acentuadas do que hoje. Duas perguntas óbvias se colocam:

1) Quais países se desenvolveram e quais não?
2) É possível identificar alguns fatores causais?

A resposta à primeira pergunta é bastante clara. Fora da Europa Ocidental, duas regiões principais se desenvolveram: os Estados Unidos e o Japão, ou seja, as duas regiões que escaparam da colonização européia. As colônias japonesas são um caso especial: embora o Japão fosse um poder colonial brutal, não pilhava as suas possessões, desenvolvia-as, quase que no mesmo ritmo da própria metrópole.

E a Europa Oriental? No século 15, a Europa começou a se dividir, o Oeste se desenvolvendo e o Leste permanecendo como sua área de serviço, o Terceiro Mundo original. As divisões se aprofundaram no início do século 20, quando a Rússia se excluiu do sistema. Apesar das espantosas atrocidades de Stalin e da terrível destruição das duas guerras, o sistema soviético passou por uma significativa industrialização. Era o “Segundo Mundo” e não parte do Terceiro – ou era, até 1989.

Sabemos, por meio de documentos internos, que na década de 1960 os líderes ocidentais temeram que o crescimento econômico da Rússia inspirasse o “nacionalismo radical” em outras partes do mundo e que outros países pudessem ser contaminados pela doença que infectou a Rússia em 1917, quando esta não mais se dispôs “a complementar as economias industriais do Ocidente”; a forma como um prestigioso grupo de estudos descreveu o problema do comunismo em 1955. A invasão de 1918 pelos exércitos ocidentais foi, portanto, uma ação defensiva para proteger a “prosperidade do sistema capitalista mundial” ameaçado por mudanças sociais no interior de suas áreas de serviço. Ela é assim descrita por uma respeitável cultura acadêmica.

A lógica da Guerra Fria evoca os episódios de Granada e Guatemala, embora naquele caso a escala tenha sido tal que o conflito acabou ganhando vida própria. Não surpreende que com a vitória do antagonista mais poderoso os padrões tradicionais estejam sendo restaurados. Também não surpreende que o orçamento do Pentágono permaneça no mesmo nível dos tempos da Guerra Fria e que esteja até crescendo, pois a política internacional de Washington praticamente não mudou – outros fatos que nos ajudam a formar uma ideia sobre a realidade da ordem global.

Voltando à questão de quais países se desenvolveram, ao menos uma conclusão parece razoavelmente clara: o desenvolvimento está condicionado à não-submissão às “experiências” baseadas em “más ideias”, mas que eram ótimas para os seus criadores e associados. Não que isso tenha sido uma garantia de sucesso, mas tudo indica que foi um pré-requisito. Quanto à segunda questão: como foi que a Europa e os que escaparam ao seu controle conseguiram se desenvolver? Parte da resposta parece clara, uma vez mais: violando radicalmente a doutrina autorizada do livre mercado. Essa conclusão é válida desde a Inglaterra até as atuais regiões de crescimento do leste da Ásia, incluindo, é claro, os Estados Unidos, campeão do protecionismo desde a sua origem.

A historiografia econômica reconhece que a intervenção estatal desempenhou um papel crucial no crescimento econômico. Mas seu impacto é subestimado devido a um enfoque limitado. Uma omissão importante, por exemplo, é o fato de que a revolução industrial baseou-se no algodão barato, oriundo principalmente dos Estados Unidos. E ele se manteve barato e disponível não pela ação das forças de mercado, mas graças à eliminação da população nativa e à escravidão. Havia, é claro, outros produtores, dentre os quais se destacava a Índia. Suas riquezas foram drenadas para a Inglaterra ao mesmo tempo em que sua avançada indústria têxtil foi destruída pelo protecionismo e pelo poder britânicos. O Egito também deu passos em direção ao desenvolvimento na mesma época que os Estados Unidos, mas foi bloqueado pela Inglaterra, pela razão absolutamente explícita de que a Grã Bretanha não podia tolerar nenhum desenvolvimento independente naquela região. A Nova Inglaterra, ao contrário, seguiu o caminho da pátria-mãe, barrando os têxteis britânicos mais baratos por meio de elevadas taxações, tal como a Grã-Bretanha havia feito com a Índia. Sem essas medidas, metade da emergente indústria têxtil da Nova Inglaterra teria sido destruída, segundo estimam historiadores econômicos, com amplas repercussões sobre o crescimento industrial norte-americano em geral.

Um análogo contemporâneo é a modalidade de energia que dá suporte às economias industriais avançadas. A “época de ouro” do desenvolvimento no pós-guerra baseou-se no petróleo barato e abundante, assim mantido por meio de ameaças e do uso efetivo da força. E assim continua. Boa parte do orçamento do Pentágono se destina a manter o preço do petróleo do Oriente Médio em níveis que os Estados Unidos e suas empresas de energia consideram apropriados. Conheço um único estudo técnico sobre o assunto e ele conclui dizendo que os gastos do Pentágono equivalem a um subsídio de 30 por cento sobre o preço de mercado do petróleo, demonstrando que “a ideia corrente de que o combustível fóssil é barato não passa de completa ficção”. As ideias sobre a pretensa eficiência do comércio e as conclusões sobre a saúde e o crescimento da economia possui limitada validez se ignoramos esses custos ocultos.

Um grupo de eminentes economistas japoneses publicou recentemente um estudo, em vários volumes, sobre os programas japoneses de desenvolvimento econômico desde a II Grande Guerra. Eles assinalam que o Japão rejeitou as doutrinas neoliberais de seus conselheiros norte-americanos, adotando em seu lugar uma política industrial que atribuía um papel preponderante ao Estado. Os mecanismos de mercado foram gradualmente introduzidos pela burocracia estatal e pelos conglomerados industrial financeiros à medida que cresciam as perspectivas de sucesso comercial. A rejeição dos preceitos da economia ortodoxa foi uma condição do “milagre japonês”, concluem os economistas. O êxito do país é impressionante. Virtualmente desprovido de uma base de recursos naturais, o Japão se tomou, na década de 1990, a maior economia industrial do mundo e a mais importante fonte mundial de investimento estrangeiro, além de responder por metade da poupança líquida mundial e financiar o déficit norte-americano.

Quanto às ex-colônias japonesas, um estudo altamente especializado da missão de ajuda externa dos EUA em Taiwan revelou que tanto os conselheiros norte-americanos quanto os planejadores chineses desconsideraram os princípios da “economia anglo-americana”, desenvolvendo uma “estratégia centrada no Estado”, que contou com “a ativa participação do governo nas atividades econômicas da ilha, um planejamento consciente com execução devidamente supervisionada”.

Enquanto isso, funcionários do governo americano “alardeavam Taiwan como um caso bem-sucedido da iniciativa privada”.

Na Coréia do Sul, o “estado empresário” funciona de modo diverso, mas a sua mão condutora não é menos ativa. Neste exato momento, o ingresso da Coréia do Sul na Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OCDE), o clube dos ricos, vem sendo protelado devido à sua pouca disposição de se submeter às políticas orientadas para o mercado, como a autorização de remessa de lucros e a livre movimentação de capitais, tal qual o seu mentor, o Japão, que vedou a exportação de capitais até que a sua economia estivesse bem ancorada.

Na edição de agosto de 1996 do Research Observer, órgão do Banco Mundial, o então diretor do Conselho de Assessoria Econômica do presidente Clinton, Joseph Stiglitz, tira “lições do Milagre Leste Asiático”, dentre elas a de que “o governo assumiu a maior parcela de responsabilidade na promoção do crescimento econômico”, abandonando a “religião” de que o mercado é quem sabe mais e intervindo para intensificar a transferência de tecnologia, a igualdade relativa, a educação, a saúde, além da coordenação e planejamento industrial. O Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano 1996 destaca a importância decisiva das políticas governamentais de “capacitação de recursos humanos e atendimento às necessidades sociais básicas” como “trampolim para o crescimento econômico sustentado”. As doutrinas neoliberais, independentemente do que se pense delas, debilitam a educação e a saúde, aumentam a desigualdade social e reduzem a parcela do trabalho na distribuição da renda. Ninguém duvida disso seriamente hoje em dia.

Um ano mais tarde, depois que as economias asiáticas foram duramente atingidas por crises financeiras e de mercado, Stiglitz – já então diretor do Banco Mundial – reiterou suas conclusões (Keynote Adress, atualizado, Annual World Bank Conference on Development Economics 1997, Banco Mundial 1998, Wider Annual Lectures 2, 1998). “A crise atual no leste da Ásia não representa uma refutação do ‘Milagre Leste Asiático”, escreveu. “Os fatos básicos permanecem: nenhuma outra região do mundo jamais experimentou uma elevação de renda tão vertiginosa nem viu tanta gente sair da pobreza em tão curto espaço de tempo”. Essas “espantosas conquistas” são realçadas pelo fato de a renda per capita da Coréia do Sul ter decuplicado nas últimas três décadas, um sucesso sem precedente, com “fortes doses de participação governamental”, em violação ao Consenso de Washington, mas de acordo com o desenvolvimento econômico dos Estados Unidos e da Europa, ele acrescenta com justeza. “Longe de ser uma refutação do “Milagre Leste Asiático”, conclui, a “grave perturbação financeira” na Ásia “talvez seja, em parte, conseqüência do abandono das estratégias que tão bem serviram às suas economias, incluindo os mercados financeiros bem regulados” – em medida não pequena, uma renúncia a estratégias bem-sucedidas em atendimento às pressões ocidentais.

Outros especialistas expressaram opiniões similares, muitos de maneira ainda mais enfática. A diferença entre o Leste Asiático e a América Latina é impressionante. A América Latina é campeã mundial de desigualdade social e o Leste Asiático está entre as regiões com os melhores índices. O mesmo se dá na educação, na saúde e na seguridade social. As importações da América Latina pendem fortemente para a satisfação do consumo dos ricos; na Ásia Oriental, para o investimento produtivo. A fuga de capitais atingiu, na América Latina, a escala da sua excruciante dívida externa; na Ásia Oriental, era até pouco tempo severamente controlada. Na América Latina, os ricos estão geralmente isentos de obrigações sociais, dentre elas o pagamento de impostos. O problema da América Latina não é o “populismo”, assinala o economista brasileiro Bresser Pereira, “mas a subordinação do Estado aos ricos”. A situação do Leste Asiático é muito diferente.

As economias latino-americanas também estiveram mais abertas ao investimento estrangeiro. Segundo analistas de comércio e desenvolvimento das Nações Unidas (UNCTAD), na América Latina, desde a década de 1950 as multinacionais estrangeiras “controlam uma parcela bem maior da produção industrial” do que no caso bem-sucedido do Leste Asiático. Até o Banco Mundial admite que o investimento estrangeiro e as privatizações que aclama “tenderam a substituir outros fluxos de capital” na América Latina, transferindo o controle e enviando lucros para o exterior. O Banco Mundial também reconhece que, no Japão, Coréia do Sul e Taiwan, os preços se desviaram mais dos preços de mercado do que na Índia, Brasil, México, Venezuela e outros países ditos intervencionistas, ao passo que a China, o país mais intervencionista e que mais distorce os preços de mercado, tornou-se o favorito do Banco Mundial e o que mais cresce como tomador de empréstimos. E, no caso do Chile, os estudos do Banco Mundial deixaram de mencionar que as minas de cobre nacionalizadas são a maior fonte de receitas de exportação do país, para citar apenas um exemplo.

Parece que a abertura para a economia internacional acarretou um custo significativo para a América Latina, que se soma à incapacidade de controlar o capital e os ricos, e não apenas o trabalho e os pobres. É claro que alguns setores da população saem lucrando, como no período colonial. O fato de eles serem tão devotos das doutrinas da “religião” quanto os investidores estrangeiros não deveria causar surpresa.

O papel da gestão e da iniciativa estatal nas economias bem sucedidas deveria ser uma história bem conhecida. Relacionada a essa está a questão de como o Terceiro Mundo se tornou o que é hoje. Esse problema é discutido pelo eminente economista Paul Bairoch. Num importante estudo recente ele observa que “não resta dúvida de que o liberalismo compulsório do Terceiro Mundo no século 19 é um importante fator explicativo do atraso de sua industrialização” e, no caso bastante revelador da Índia, o “processo de desindustrialização”, que transformou o laboratório da indústria e centro de comércio do mundo numa sociedade agrícola profundamente empobrecida, que experimentou um agudo declínio dos salários reais, do consumo de alimentos e da disponibilidade de gêneros de primeira necessidade. “A Índia foi apenas a primeira de uma longa lista de vítimas” que inclui, diz Bairoch, “até mesmo países politicamente independentes do Terceiro Mundo [que] foram forçados a abrir seus mercados aos produtos ocidentais”. Enquanto isso, as sociedades ocidentais se protegiam da disciplina do mercado e prosperavam.

VARIANTES DA DOUTRINA NEOLIBERAL

Chegamos agora a outro importante aspecto da história moderna. A doutrina do livre mercado se apresenta em duas variantes. A primeira é a doutrina oficial imposta aos indefesos. A segunda é a que podemos chamar de “doutrina do livre mercado realmente existente”: a disciplina do mercado é boa para você, mas não para mim, a não ser por algumas vantagens temporárias. É a “doutrina do mercado realmente existente” que prevalece desde o século 17, quando a Grã-Bretanha emergiu como o mais avançado Estado desenvolvimentista da Europa, com radicais aumentos de impostos e uma administração pública capaz de organizar eficientemente as atividades fiscais e militares do Estado – que se tornara “o maior agente da economia” –, assim como a sua expansão global, segundo afirma o historiador britânico John Brewer.

Ao final, a Grã-Bretanha voltou-se para o internacionalismo liberal – em 1846 – após 150 anos de protecionismo, violência e poder estatal que a colocaram bem à frente de qualquer competidor. Cerca de 40 por cento dos têxteis britânicos continuaram fluindo para a Índia colonizada, o mesmo valendo para as exportações britânicas em geral. O aço britânico foi mantido fora do mercado norte americano por meio de elevadíssimas tarifas, que propiciaram aos norte-americanos o desenvolvimento de sua própria siderurgia. Mas a Índia e outras colônias permaneceram disponíveis, e assim se mantiveram, mesmo diante do preço exorbitante do aço britânico. O caso da Índia é bastante instrutivo: o país produzia tanto ferro quanto a Europa inteira em fins do século 18 e, em 1820, suas técnicas siderúrgicas mais avançadas estavam sendo estudadas por engenheiros britânicos que buscavam cobrir o “lapso tecnológico”. Bombaim produzia locomotivas em níveis competitivos quando começou o boom ferroviário. Mas a doutrina do livre mercado realmente existente destruiu esses setores da indústria nacional do mesmo modo como havia destruído as indústrias têxteis, navais e outras, bastante avançadas para os padrões da época. Em contraste, os Estados Unidos e o Japão, que haviam escapado do controle europeu, puderam adotar o modelo britânico de interferência no mercado.

Quando a concorrência japonesa se mostrou forte demais para ser controlada, a Inglaterra simplesmente suspendeu a partida: o império foi efetivamente fechado às exportações japonesas, o que constituiu uma parte do cenário da II Grande Guerra. Nessa mesma época, a indústria da Índia pediu proteção – contra a Inglaterra, não contra o Japão. Mas não iria funcionar, sob a doutrina do livre mercado realmente existente.

Com o abandono da sua versão restrita de laissez-faire nos anos 1930, o governo britânico voltou-se para uma intervenção mais direta na economia do país. Em poucos anos, a produção de máquinas-ferramenta cresceu cinco vezes, juntamente com o boom das indústrias química, siderúrgica, aeroespacial e uma série de outras, “uma não celebrada nova onda da revolução industrial”, escreve o analista econômico Will Hutton. A indústria estatizada permitiu à Grã-Bretanha ultrapassar a Alemanha durante a guerra e até diminuir a distância em relação aos Estados Unidos, que então viviam a sua própria espetacular expansão econômica, com os administradores de empresas assumindo o comando da economia de guerra coordenada pelo Estado.

Um século depois de a Inglaterra voltar-se para uma espécie de internacionalismo liberal, os Estados Unidos seguiram pelo mesmo caminho. Depois de 150 anos de protecionismo e violência, os Estados Unidos haviam se tomado, de longe, o país mais rico e poderoso do mundo e, tal como a Inglaterra a seu tempo, percebido as virtudes do “campo aberto” no qual pudessem ter a expectativa de esmagar qualquer competidor. Mas, tal como a Inglaterra, os Estados Unidos tinham reservas cruciais.

Uma delas foi usar o seu poder para impedir o desenvolvimento independente de outros países, como fizera a Inglaterra. Na América Latina, no Egito, no sul da Ásia e em todos os lugares, o desenvolvimento tinha de ser “complementar” e não “concorrente”. Houve também interferência em larga escala no comércio. Por exemplo, a ajuda do Plano Marshall estava vinculada à compra de produtos agrícolas norte-americanos, o que explica em parte o aumento da participação dos Estados Unidos no mercado mundial de cereais de menos de 10 por cento antes da guerra para mais de 50 em 1950, enquanto as exportações da Argentina eram reduzidas em dois terços. Tal como outras medidas destinadas a bloquear qualquer desenvolvimento independente, o programa de ajuda externa Alimentos para a Paz serviu tanto para subsidiar a agroindústria e as exportações norte-americanas como para enfraquecer os produtores de outros países. A virtual destruição da produção de trigo colombiano por esses meios foi um dos fatores que engendraram a indústria da droga naquele país, acelerada nos últimos anos em toda a região andina pela política neoliberal. A indústria têxtil do Quênia entrou em colapso em 1994, quando o governo Clinton impôs uma cota, barrando a rota de desenvolvimento seguida por todos os países industrializados, ao mesmo tempo em que os “reformistas africanos” eram advertidos de que deviam fazer mais progressos na formação de um ambiente propício aos negócios e na “ratificação das reformas em direção ao livre mercado”, com políticas comerciais e de investimento que atendessem às exigências dos investidores ocidentais.

Essas são algumas ilustrações esparsas. Mas os desvios mais importantes em relação à doutrina do livre mercado estão noutro lugar. Um dos elementos básicos da teoria do livre mercado é a proibição dos subsídios governamentais. Ao final da II Grande Guerra, porém, alguns líderes empresariais norte-americanos eram de opinião de que a economia marcharia de volta à depressão se não houvesse intervenção estatal. Insistiram também na tese de que a indústria avançada – especificamente a aeronáutica, embora a conclusão fosse mais geral “não pode existir satisfatoriamente, numa economia de ‘livre empresa’ pura, competitiva e não-subsidiada” e que “o governo é a única salvação”. Cito a grande imprensa de negócios, que também admitiu que o sistema do Pentágono era a melhor forma de transferir custos para a população. Eles compreendiam que os gastos sociais, ainda que possam desempenhar o mesmo papel estimulador, não constituem subsídio direto ao setor das grandes empresas, além de terem efeitos democratizantes e redistributivos. Os gastos militares não têm nenhum desses defeitos.

E também é fácil de vender. O Secretário da Força Aérea do governo Truman colocou a questão de maneira muito simples: “Não devemos usar a palavra subsídio; a palavra que devemos usar é garantia”. Ele assegurou que o orçamento militar “atenderia às necessidades da indústria aeronáutica”. Como conseqüência, a aviação civil é hoje o setor que lidera as exportações do país, e a gigantesca indústria de viagens e turismo, largamente baseada no transporte aéreo, é uma das mais lucrativas.

Foi, portanto, absolutamente apropriado da parte de Clinton escolher a Boeing como “modelo para as empresas de toda a América”, em sua pregação de “nova visão” do futuro do livre mercado na reunião de cúpula do Pacífico Asiático em 1993, sendo muito aclamado. Ótimo exemplo de mercado realmente existente, a aviação civil está quase toda nas mãos de duas companhias, a Boeing-McDonald e a Airbus, que devem sua existência e seu sucesso ao subsídio público em larga escala. O mesmo padrão se apresenta nas indústrias de computadores, de eletrônicos, de automação, de biotecnologia, de comunicações, na verdade em quase todos os setores dinâmicos da economia.

Não foi preciso explicar a doutrina do “capitalismo de livre mercado realmente existente” ao governo Reagan. Seus homens eram mestres na arte de exaltar ante os pobres as glórias do mercado e ao mesmo tempo ostentar com orgulho, perante o mundo dos negócios, que Reagan “havia ajudado a indústria norte-americana com mais restrições à importação do que qualquer antecessor seu nos últimos cinqüenta anos” – no que estavam sendo extremamente modestos; ele ultrapassou todos os antecessores juntos, uma vez que “conduziu a maior guinada protecionista desde a década de 1930”, observou Foreign Affairs numa resenha da década. Sem essas e outras medidas extremas de intromissão no mercado, é duvidoso que as indústrias siderúrgicas, automotivas, de máquinas, ferramentas e de semicondutores tivessem sobrevivido à concorrência japonesa ou sido capazes de tomar a dianteira em novas tecnologias, com amplas repercussões sobre toda a economia. Essa experiência ilustra uma vez mais que o “saber convencional” está “cheio de furos”, conforme assinala uma outra resenha dos anos Reagan em Foreign Affairs. Mas o saber convencional mantém seus méritos como arma ideológica para disciplinar os indefesos.

Os Estados Unidos e o Japão anunciaram, recentemente, a criação de importantes novos programas governamentais de financiamento de tecnologia avançada (aviação e semicondutores, respectivamente) para sustentar o setor industrial privado com subsídios públicos.

Para ilustrar a “teoria do livre mercado realmente existente” com uma outra dimensão nos reportaremos ao amplo estudo de Winfried Ruigrock e Rob van Tulder sobre os conglomerados transnacionais, o qual concluiu que “a posição estratégica e competitiva de praticamente todas as grandes empresas-mãe do mundo foi decisivamente influenciada por políticas governamentais e/ou barreiras comerciais” e que “pelo menos vinte das cem maiores empresas da revista Fortune em 1993 não teriam sobrevivido como empresas independentes se não fossem salvas por seus governos”, com a socialização de prejuízos ou o controle estatal direto em situações de crise. Uma delas é a Lockhead, a maior empregadora do distrito profundamente conservador de Gingrich, salva da ruína graças a vultosos empréstimos garantidos pelo governo. O mesmo estudo sublinha que a intervenção governamental, “regra e não exceção nos últimos duzentos anos..., desempenhou um papel-chave para o desenvolvimento e difusão de inovações em produtos e processos – especialmente em tecnologia aeroespacial, eletrônica, agrícola moderna, novos materiais, energia e transporte”, assim como nas telecomunicações e na informação em geral (Internet e World Wide Web são notáveis exemplos recentes) e, em épocas passadas, em produtos têxteis, siderurgia e, é claro, energia. As políticas governamentais “foram uma força avassaladora na construção da estratégia e da competitividade das maiores empresas do mundo”. Outros estudos técnicos apenas confirmam essa conclusão.

Há muito mais para ser dito sobre essa questão, mas uma conclusão parece bastante clara: as doutrinas aprovadas são construídas e aplicadas por motivos de poder e lucro. As “experiências” contemporâneas seguem um padrão conhecido ao assumirem a forma de “socialismo para os ricos” dentro de um sistema de mercantilismo empresarial global no qual o “comércio” consiste, em larga medida, de transações centralmente administradas no interior das próprias empresas, imensas instituições ligadas aos seus concorrentes por alianças estratégicas e dotadas de estruturas internas tirânicas projetadas para obstaculizar a tomada de decisões democráticas e para proteger seus donos da disciplina do mercado. Essa implacável disciplina é para ser ensinada somente aos pobres e indefesos.

Poderíamos também perguntar até que ponto a economia é realmente “global” e até que ponto pode estar sujeita ao controle popular e democrático. Em termos de comércio, fluxos financeiros e outros fatores, a economia não é hoje mais global do que em meados no século 20. Além disso, os conglomerados transnacionais se apoiam pesadamente nos subsídios públicos e nos mercados internos, e suas transações internacionais, incluindo aquelas indevidamente rotuladas como comércio, envolvem notadamente a Europa, o Japão e os Estados Unidos, onde se praticam medidas políticas sem temor de golpes militares e coisas do gênero. Há muito de novo e de significativo, mas a crença de que as coisas estão “fora do controle” não é digna de crédito, mesmo se nos ativermos aos mecanismos existentes.

Será uma lei da natureza que temos de aceitar esses mecanismos? Não, se levarmos a sério as doutrinas do liberalismo clássico. É bem conhecido o elogio da divisão do trabalho em Adam Smith, mas não a denúncia que fez dos seus efeitos desumanos, a transformação dos trabalhadores em objetos “estúpidos e ignorantes até onde é possível a uma criatura humana”, algo que deve ser evitado “em todas as sociedades desenvolvidas e civilizadas” por meio de uma ação governamental que domine a força destrutiva da “mão invisível”. Não muito divulgada também é a sua crença de que a regulação do governo “a favor dos trabalhadores é sempre justa e equitativa”, o mesmo não ocorrendo quando ele regula “a favor dos empregadores”. Igualmente desconhecida é a exigência de equidade de resultados, situada no coração de sua defesa dos mercados livres.

Outras personalidades que contribuíram para o cânone liberal clássico vão muito além. Wilhelm von Humboldt condenou o próprio trabalho assalariado: “Quando o trabalhador atua sob controle externo”, escreveu, “talvez admiremos o que ele faz, mas desprezamos o que ele é”. Alexis de Tocqueville observou que “a arte avança, o artífice retrocede”. Uma das figuras de proa do panteão liberal, Tocqueville pensava, como Smith e Jefferson, que a equidade de resultados é um aspecto importante de uma sociedade livre e justa. Há 160 anos, advertiu para os perigos de “uma permanente desigualdade de condições”, o fim mesmo da democracia caso “a aristocracia manufatureira que cresce debaixo de nossas vistas” nos Estados Unidos, “uma das mais agressivas que já existiram no mundo”, saia de suas fronteiras – como saiu mais tarde, para muito além de seus piores pesadelos.

Passo por alto alguns temas intrincados e fascinantes que indicam – creio – que os mais importantes princípios do liberalismo clássico encontram a sua expressão moderna natural não na “religião” neoliberal, mas nos movimentos independentes dos trabalhadores e nas idéias e práticas dos movimentos socialistas libertários, e também de algumas das maiores figuras do pensamento do século 20, como Bertrand Russell e John Dewey.

Deve-se avaliar com cautela as doutrinas que dominam o discurso intelectual, prestando cuidadosa atenção às discussões, aos fatos e às lições históricas do passado e do presente. Não tem sentido perguntar o que é “certo” para determinados países, como se fossem entidades com valores e interesses comuns. E o que pode ser certo para o povo dos Estados Unidos, com suas vantagens sem paralelo, pode ser errado em países onde o leque de opções é bem menor. É razoável supor, no entanto, que o que é certo para os povos do mundo somente por um acaso remoto há de estar de acordo com os planos dos “grandes arquitetos” das políticas governamentais. E não há hoje mais razão do que já houve um dia para permitir que eles moldem o futuro de acordo com os seus próprios interesses.

Uma versão deste artigo, traduzida para o português e o espanhol foi publicada pela primeira vez na América do Sul em 1996.

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