sábado, 8 de novembro de 2014

Para entender O capital: Livro I. - David Harvey - Introdução

Quem não se interessar em ler esse livro depois dessa introdução, onde o coloca, além do livro O Capital, as portas comparativas de outros pensadores que antecederam Karl Marx, não sei mas o que fará.  Eu estou comendo com feijão, pois ainda tem outros dois....  :)


Introdução

Meu objetivo é levar você, leitor, a ler um livro de Karl Marx chamado O capital, Livro I[a], e a lê-lo nos próprios termos de Marx. Isso pode parecer um pouco ridículo, já que, se você ainda não leu o livro, não pode saber quais são os termos de Marx; mas um desses termos, eu lhe asseguro, é que o leia – e cuidadosamente. O aprendizado real sempre implica uma luta para compreender o desconhecido. Minhas próprias leituras d’O capital, reunidas no presente volume, serão muito mais esclarecedoras se você tiver lido antes os capítulos em questão. É seu encontro pessoal com o texto de Marx que eu pretendo encorajar, e, na luta direta com ele, você poderá começar a formar uma compreensão própria do pensamento marxiano.

Isso implica, desde já, uma dificuldade. Todo mundo já ouviu falar de Karl Marx, de termos como “marxismo” e “marxista”, e um mundo de conotações acompanha essas palavras, de modo que você está preso desde o início a preconcepções e preconceitos, favoráveis ou não. Mas eu lhe peço que procure deixar de lado, o melhor que puder, tudo aquilo que você acha que sabe sobre Marx, pois só assim poderá captar o que ele realmente tem a dizer.

Há ainda outros obstáculos para chegar a esse tipo de contato direto. Somos levados, por exemplo, a abordar um texto desse tipo a partir de nossas próprias formações intelectuais e experiências. Para muitos estudantes, essas formações intelectuais são afetadas, quando não governadas, por considerações e preocupações acadêmicas; há uma tendência natural a ler Marx do ponto de vista de uma disciplina particular e exclusivista. O próprio Marx jamais ocupou uma cadeira universitária, em nenhuma disciplina, e mesmo hoje a maioria dos aparatos departamentais dificilmente o aceitaria como um dos seus. Portanto, se você é um estudante de graduação e quer lê-lo corretamente, é melhor não pensar no que ganhará com isso em sua área específica – não em longo prazo, é claro, mas ao menos no propósito de ler Marx. Em suma, você terá de lutar com coragem para determinar o que ele está dizendo além daquilo que você pode entender facilmente com seu aparato disciplinar particular, sua formação intelectual e, mais importante, sua própria história de vida (seja como líder trabalhista ou comunitário, seja como empreendedor capitalista).

Uma importante razão para assumir uma postura aberta em relação a essa leitura é o fato de O capital ser um livro extremamente rico. Shakespeare, os gregos, Fausto, Balzac, Shelley, contos de fadas, lobisomens, vampiros e poesia, encontramos tudo isso em suas páginas, ao lado de inúmeros economistas políticos, filósofos, antropólogos, jornalistas e cientistas políticos. Marx trabalha com uma imensa gama de fontes, e pode ser instrutivo – e divertido – refazer seu caminho até elas. Algumas dessas referências podem ser alusivas, já que muitas vezes ele não as indica diretamente; até hoje, à medida que ensino O capital, continuo a encontrar novas conexões. Quando comecei, não tinha lido muito Balzac, por exemplo. Mais tarde, ao ler seus romances, peguei-me muitas vezes dizendo: “Ah, foi daqui que Marx tirou tal coisa!”.

Segundo consta, Marx leu extensivamente a obra de Balzac e ambicionava escrever um estudo completo sobre A comédia humana, depois de terminar O capital. Ler ao mesmo tempo Balzac e O capital ajuda a entender por quê.

O capital é, portanto, um texto rico e multidimensional. Ele se move num vasto mundo de experiências, conceitualizado numa grande diversidade de literaturas escritas em muitas línguas, em diferentes lugares e épocas. Não estou dizendo, apresso-me a explicar, que você não será capaz de compreender Marx se não entender todas as referências. Mas o que me inspira, e espero que inspire você, é a ideia de que há nelas uma imensa gama de recursos que podem esclarecer por que vivemos a vida do modo como a vivemos. Da mesma forma que elas foram a água que moveu o moinho da compreensão marxiana, podemos fazer delas a água para mover o nosso próprio moinho.

Você verá também que O capital é um livro impressionante enquanto tal, isto é, como livro. Quando é lido como um todo, mostra-se uma construção literária enormemente gratificante. Mas aqui encontramos outras barreiras potenciais a sua compreensão, pois muitos leitores, no decorrer de sua formação, devem ter se deparado com Marx e lido alguns de seus trechos. Talvez tenham lido o Manifesto Comunista no Ensino Médio. Ou talvez tenham cursado uma daquelas disciplinas de teoria social em que se gastam duas semanas com Marx, duas com Weber, algumas com Durkheim, Foucault e uma série de outras figuras importantes. Talvez tenham lido excertos d’O capital ou alguma exposição teórica das crenças políticas de Marx, por exemplo. No entanto, ler excertos ou resumos é totalmente diferente de ler O capital como um texto integral. Você começa a ver os pedaços e as peças sob uma luz radicalmente nova, no contexto de uma narrativa muito mais ampla. É vital que você preste muita atenção à grande narrativa e esteja preparado para mudar sua compreensão dos pedaços e das peças, assim como dos resumos que leu anteriormente. Marx certamente desejaria que sua obra fosse lida como um todo. Objetaria ferozmente à ideia de que pudesse ser compreendido de maneira adequada por meio de excertos, não importa quão estrategicamente escolhidos. Certamente não gostaria de ser estudado por apenas duas semanas num curso introdutório de teoria social, do mesmo modo como teria se dedicado mais do que apenas duas semanas à leitura de Adam Smith. Lendo O capital como um todo, é quase certo que você chegará a uma concepção bastante diferente do pensamento de Marx. Mas isso significa que você terá de ler o livro inteiro como um livro – e é nisso que pretendo ajudá-lo.

Existe um modo de leitura em que as formações intelectuais e os pontos de vista disciplinares não apenas são importantes, como fornecem perspectivas úteis sobre O capital. Obviamente, sou contra o tipo de leitura exclusivista em torno da qual os estudantes quase invariavelmente organizam suas análises, mas aprendi, ao longo dos anos, que perspectivas disciplinares podem ser instrutivas.

Ensino O capital quase todos os anos, desde 1971, às vezes duas ou até mesmo três vezes por ano, para grupos de todos os tipos. Num ano, com o todo o Departamento de Filosofia – até certo ponto hegeliano – do então chamado Morgan State College, em Baltimore; noutro ano, com todos os estudantes de graduação do curso de inglês da Universidade Johns Hopkins; e, no outro, majoritariamente com economistas. O fascinante era que cada grupo via coisas diferentes n’O capital.

Aprendi cada vez mais sobre ele ao trabalhar com pessoas de disciplinas diferentes. Mas houve momentos em que essa experiência didática se tornou irritante, e até mesmo dolorosa, porque um grupo em particular se recusava a ver as coisas a meu modo ou insistia em questões que me pareciam irrelevantes. Certa vez, tentei ler O capital com um grupo do Programa de Línguas Românicas da Universidade Johns Hopkins. Para minha enorme frustração, gastamos quase todo o semestre com o capítulo 1. Eu dizia “Olhem, precisamos ir em frente e chegar, no mínimo, na parte da política da jornada de trabalho”, e eles diziam “Não, não, precisamos entender isso melhor. O que é valor? O que ele entende por dinheiro/mercadoria?

O que é fetiche?”, e assim por diante. Chegaram até a levar para as aulas uma edição alemã para checar as traduções. Descobri que estavam seguindo a tradição de alguém que, na época, eu desconhecia completamente, alguém que, imaginei, devia ser um idiota político, se não um idiota intelectual, para difundir esse tipo de abordagem. Essa pessoa era Jacques Derrida, que havia passado uma temporada na Universidade Johns Hopkins no fim dos anos 1960 e início dos anos 1970. Mais tarde, refletindo sobre essa experiência, percebi que aquele grupo, apenas por insistir em passar a pente fino todo o capítulo 1, havia me ensinado a importância vital de prestar muita atenção à linguagem de Marx – o que ele diz, como diz e também o que toma como pressuposto.

Mas não se preocupe: não tenho a intensão de fazer isso nesta leitura, e não só porque pretendo tratar da discussão marxiana sobre a jornada de trabalho, mas porque quero que você chegue ao fim deste volume. A questão é simplesmente que diferentes perspectivas disciplinares podem ser úteis para descortinar as múltiplas dimensões do pensamento marxiano, e justamente porque ele escreveu esse texto segundo uma tradição de pensamento crítico extremamente rica e diversificada. Sou grato às muitas pessoas e grupos com que li esse livro ao longo de tantos anos, precisamente porque me ensinaram tanto sobre aspectos da obra de Marx que eu jamais teria notado por conta própria. Para mim, essa formação jamais termina. Três grandes tradições intelectuais e políticas inspiram a análise realizada n’O capital, e todas receberam de Marx, que era profundamente comprometido com a teoria crítica, uma análise crítica.

Quando relativamente jovem, ele escreveu para um de seus colegas redatores um pequeno texto, cujo título era “Para uma crítica impiedosa de tudo o que existe”[b]. É óbvio que ele estava sendo modesto – e sugiro que você leia esse texto, porque é fascinante. Ele não diz: “Todos são estúpidos e eu, o grande Marx, vou criticá-los de um ponto de vista externo à existência”. Ao contrário, ele argumenta que um grande número de pessoas sérias dedicou-se bravamente a pensar a respeito do mundo e viu certas coisas que deviam ser respeitadas, não importa quão unilaterais ou desvirtuadas fossem. O método crítico toma o que outros disseram e vislumbraram e trabalha com esse material a fim de transformar o pensamento – e o mundo que ele descreve – em algo novo. Para Marx, um conhecimento novo surge do ato de tomar blocos conceituais radicalmente diferentes, friccioná-los uns contra os outros e fazer arder o fogo revolucionário. E é o que ele faz n’O capital: combina tradições intelectuais divergentes para criar uma estrutura
completamente nova e revolucionária para o conhecimento.

Há três grandes estruturas conceituais convergentes n’O capital.

A primeira é a economia política clássica – a economia política do século XVII até meados do século XIX; essa tradição é sobretudo britânica, mas não exclusivamente, e vai de William Petty, Locke, Hobbes e Hume até o grande trio formado por Adam Smith, Malthus e Ricardo, entre outros (James Steuart, por exemplo). A tradição francesa da economia política (fisiocratas como Quesnay, Turgot e, mais tarde, Sismondi e Say), assim como italianos e norteamericanos (como Carey), também forneceu material crítico adicional a Marx. Ele submeteu todos esses autores a uma profunda crítica nos três volumes de notas que hoje chamamos de Teorias do mais-valor. Como não tinha fotocopiadora nem internet à disposição, ele copiava laboriosamente longas passagens de Adam Smith e então escrevia um comentário sobre elas, depois copiava longas passagens de James Steuart e então escrevia um comentário sobre elas, e assim por diante. Na verdade, Marx praticava o que hoje chamamos de desconstrução e, com ele, aprendi como desconstruir argumentos. Quando trata de Adam Smith, por exemplo, aceita muito do que ele diz, mas então procura lacunas ou contradições que, quando corrigidas, transformam radicalmente o argumento.

Esse tipo de argumentação aparece ao longo de todo O capital, porque, como indica o subtítulo, ele se estrutura em torno de “uma crítica da economia política”.

O segundo bloco conceitual que compõe a teorização marxiana é a reflexão e a investigação filosófica, que, para Marx, originaram-se com os gregos. Marx escreveu uma tese de doutorado sobre Epicuro e tinha familiaridade com o pensamento grego. Aristóteles, como você verá, serve frequentemente como uma âncora para seus argumentos. Marx também dominava plenamente o modo como o pensamento grego foi introduzido na principal tradição crítico-filosófica alemã – Espinosa, Leibniz e, é claro, Hegel, assim como Kant e muitos outros. Marx faz uma conexão entre essa tradição crítico-filosófica alemã e a tradição político-econômica inglesa e francesa, embora, mais uma vez, seja errado entender isso apenas em termos de tradições nacionais (afinal de contas, Hume era tanto filósofo – se bem que empirista – quanto economista político, e a influência de Descartes e Rousseau sobre Marx é considerável). Mas a tradição crítico-filosófica alemã foi a que teve mais peso sobre Marx, porque foi nela que ele foi treinado. E o clima crítico provocado pelo grupo que mais tarde seria conhecido como os “jovens hegelianos”, nas décadas de 1830 e 1840, influenciou-o enormemente.

A terceira tradição a que Marx recorre é a do socialismo utópico. Na época, essa tradição era fundamentalmente francesa, embora o papel de fundador da tradição moderna – que, no entanto, também remonta aos gregos – seja creditado em geral a um inglês, Thomas More, assim como a outro inglês, Robert Owen, que não apenas escreveu longos tratados utópicos, como tentou pôr em prática muitas de suas ideias quando Marx ainda era vivo. Mas foi na França que ocorreu, nos anos 1830 e 1840, a grande explosão do pensamento utópico, largamente inspirado nos primeiros escritos de Saint-Simon, Fourier e Babeuf. Tivemos, por exemplo, Étienne Cabet (fundador de um grupo, os “icarianos”, que se instalou nos Estados Unidos após 1848); Proudhon e os proudhonianos; August Blanqui (que cunhou a expressão “ditadura do proletariado”) e muitos que, assim como ele, aderiram à tradição jacobina (como Babeuf); o movimento saint-simoniano; os fourieristas (assim como à de Victor Considerant); e as feministas socialistas (como Flora Tristan). E foi na França, nos anos 1840, que muitos radicais resolveram chamar a si mesmos de comunistas, embora não tivessem a mínima ideia do que isso significava. Marx estava bem familiarizado com essa tradição, ou mesmo imerso nela, especialmente em Paris, antes de ser expulso em 1844, e acredito que extraiu dela mais do que admitia. É compreensível que ele procurasse se distanciar do utopismo dos anos 1830 e 1840, que para ele foi o responsável, em vários sentidos, pelo fracasso da revolução de 1848 em Paris. Ele não gostava quando os utópicos elaboravam uma sociedade ideal sem ter nenhuma ideia de como passar daqui para lá, oposição que ficou clara no Manifesto Comunista. Por isso, em relação a essas ideias, ele frequentemente procede por meio da negação, em particular com respeito ao pensamento de Fourier e Proudhon.

Essas são as três principais linhas conceituais que se conjugam em O capital. Seu objetivo era transformar o projeto político radical do que ele considerava um socialismo utópico raso num comunismo científico. Mas, para isso, ele não podia apenas confrontar os utópicos com os economistas políticos. Ele tinha de recriar e reconfigurar o próprio método científico. Em linhas gerais, podemos dizer que esse novo método científico se funda na interrogação da tradição britânica da economia política clássica, usa as ferramentas da tradição alemã da filosofia crítica e aplica tudo isso para iluminar o impulso utópico francês e responder às seguintes perguntas: o que é o comunismo e como os comunistas deveriam pensar? Como podemos entender e criticar cientificamente o capitalismo, de modo a preparar de maneira mais efetiva o caminho para a revolução comunista? Como veremos, O capital tem muito a dizer sobre a compreensão científica do capitalismo, mas não sobre como construir uma revolução comunista. Também encontramos poucas informações sobre como seria a sociedade comunista.

Já mencionei algumas das dificuldades da leitura d’O capital nos termos de Marx. O próprio Marx tinha consciência dessas dificuldades e, o que é interessante, fez comentários a respeito delas em seus vários prefácios. No prefácio à edição francesa, por exemplo, responde à sugestão de dividir
a edição em fascículos. “Aplaudo vossa ideia de publicar a tradução d’O capital em fascículos”, escreveu em 1872.

Sob essa forma, o livro será mais acessível à classe trabalhadora e, para mim, essa consideração é mais importante do que qualquer outra. Esse é o belo lado de vossa medalha, mas eis seu lado reverso: o método de análise que empreguei, e que ainda não havia sido aplicado aos assuntos econômicos, torna bastante árdua a leitura dos primeiros capítulos, e é bem possível que o público francês, sempre impaciente por chegar a uma conclusão, ávido por conhecer a relação dos princípios gerais com as questões imediatas que despertaram suas paixões, venha a se desanimar pelo fato de não poder avançar imediatamente. Eis uma desvantagem contra a qual nada posso fazer, a não ser prevenir e premunir os leitores ávidos pela verdade. Não existe uma estrada real para a ciência, e somente aqueles que não temem a fadiga de galgar suas trilhas escarpadas têm chance de atingir seus cumes luminosos. (93)

Assim, também eu tenho de começar advertindo os leitores de Marx, por mais ávidos pela verdade que estejam, que, de fato, os primeiros capítulos d’O capital são particularmente difíceis. Há duas razões para isso. Uma diz respeito ao método de Marx, que examinaremos brevemente mais adiante. A outra tem a ver com o modo particular como ele concebeu seu projeto. O objetivo de Marx n’O capital é, por meio de uma crítica da economia política, compreender como o capitalismo funciona. Ele sabe que isso será uma empreitada enorme. Para realizar tal projeto, precisa desenvolver um aparato conceitual que o ajude a entender toda a complexidade do capitalismo e, numa de suas introduções, explica como planeja fazer isso. “Sem dúvida”, escreve ele no posfácio à segunda edição, “o modo de exposição tem de se distinguir, segundo sua forma, do modo de investigação”: A investigação tem de se apropriar do material [Stoff ] em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Se isso é realizado com sucesso, e se a vida do material [isto é, do modo de produção capitalista] é agora refletida idealmente, o observador pode ter a impressão de se encontrar diante de uma construção a priori. (90)

O método de investigação de Marx começa com tudo o que existe – a realidade tal como é experimentada, assim como todas as descrições disponíveis dessa experiência na obra de economistas políticos, filósofos, romancistas etc. Ele submete esse material a uma crítica rigorosa a fim de descobrir conceitos simples, porém poderosos, que iluminem o modo como a realidade funciona. É isso que ele chama de método de descenso – partimos da realidade imediata ao nosso redor e buscamos, cada vez mais profundamente, os conceitos fundamentais dessa realidade. Uma vez equipados com esses conceitos fundamentais, podemos fazer o caminho de retorno à superfície – o método de ascenso – e descobrir quão enganador o mundo das aparências pode ser. Essa posição vantajosa nos permite interpretar esse mundo em termos radicalmente diferentes.

Em geral, Marx parte da aparência superficial para, então, encontrar os conceitos profundos. N’O capital, porém, ele começa apresentando os conceitos fundamentais, as conclusões a que chegou com a aplicação de seu método de investigação. Ele simplesmente expõe seus conceitos nos primeiros capítulos, diretamente e em rápida sucessão, de uma forma que, de fato, faz com que pareçam construções a priori e até mesmo arbitrárias. Assim, numa primeira leitura, não é raro que o leitor se pergunte: de onde saíram todas essas ideias e conceitos? Por que ele os usa assim? Na maioria das vezes, você não tem ideia do que ele está falando. Mas, à medida que você avança, torna-se claro como esses conceitos iluminam nosso mundo. Em pouco tempo, conceitos como valor e fetichismo adquirem sentido.

Contudo, só entendemos plenamente como esses conceitos funcionam no fim do livro! Ora, essa é uma estratégia incomum, até mesmo peculiar. Estamos muito mais familiarizados com procedimentos que constroem o argumento tijolo por tijolo. Em Marx, o argumento se parece mais com uma cebola. Talvez essa metáfora seja infeliz, porque, como alguém me advertiu certa vez, quando cortamos uma cebola, ela nos faz chorar. Marx parte do exterior da cebola, removendo as camadas externas da realidade até atingir o centro, o núcleo conceitual. Em seguida, encaminha a argumentação para fora, retornando à superfície através de várias camadas de teoria. O verdadeiro poder do argumento só se torna claro quando, tendo retornado ao reino da experiência, vemos que possuímos um arcabouço inteiramente novo de conhecimento para compreender e interpretar essa experiência. Na época, Marx revelou uma grande compreensão daquilo que faz o capitalismo crescer do modo como cresce. Assim, conceitos que à primeira vista parecem abstratos e a priori tornam-se cada vez mais ricos e plenos de sentido; à medida que avança, Marx expande a abrangência de seus conceitos. Esse procedimento é diferente da argumentação construída tijolo por tijolo, e não é fácil adaptar-se a ele. Na prática, isso significa que você tem de perseverar como um louco, em particular nos três primeiros capítulos, em que não sabe muito bem o que está acontecendo, até ter uma noção mais clara das coisas, à medida que avança.

Só então você começará a perceber como esses conceitos funcionam. O ponto de partida de Marx é o conceito de mercadoria. À primeira vista, parece uma questão um tanto arbitrária, se não estranha, para se começar. Quando pensamos em Marx, vêm a nossa mente frases como “toda a História tem sido a história da luta de classes”, do Manifesto Comunista[c]. Se é assim, por que O capital não começa com a luta de classes? Temos de ler quase trezentas páginas até conseguir mais do que uma simples pista sobre o assunto, o que pode frustrar aqueles que procuram um guia rápido de ação. Por que Marx não começa com o dinheiro? Na verdade, em suas investigações preparatórias, ele pretendia partir daí, mas, depois de estudos suplementares, concluiu que o dinheiro, mais do que presumido, tinha de ser explicado. Porque ele não começa então com o trabalho, outro conceito com que está profundamente associado? Por que começar com a mercadoria? É significativo que os escritos preparatórios de Marx indiquem um longo período, de cerca de vinte ou trinta anos, em que ele se debateu com a questão de por onde começar. O método do descenso levou-o ao conceito de mercadoria, mas ele não tenta justificar essa escolha nem se incomoda em defender sua legitimidade. Apenas começa com a mercadoria, e ponto final. É fundamental entender que ele constrói uma argumentação com base numa conclusão já determinada. Isso dá a seu argumento um começo enigmático, e o leitor fica tentado a se desmotivar ou irritar com tamanha arbitrariedade, a ponto de querer abandonar o livro no capítulo 3. Assim, Marx tem toda a razão quando diz que o começo d’O capital é particularmente difícil. Minha tarefa inicial é, portanto, guiar o leitor através dos primeiros três capítulos, pelo menos. Isso tornará a navegação posterior bem mais tranquila. Sugeri no início, entretanto, que o aparato conceitual que Marx constrói ali está relacionado não apenas com o Livro I, mas com a análise d’O capital como um todo. E, é claro, três volumes chegaram a nós, de modo que, se você quer de fato entender o modo de produção capitalista, infelizmente terá de ler os três. O Livro I oferece apenas uma perspectiva. Mas o que é pior ainda é que os três volumes são apenas um oitavo (quando muito) daquilo que ele tinha em mente. Eis o que ele escreveu num texto preparatório, intitulado Grundrisse, em que esboça vários formatos para O capital. Diz ele em determinado ponto que ambiciona tratar das seguintes questões:

1) as determinações universais abstratas, que, por essa razão, correspondem mais ou menos a todas as formas de sociedade [...].

2) As categorias que constituem a articulação interna da sociedade burguesa e sobre as quais se baseiam as classes fundamentais. Capital, trabalho assalariado, propriedade fundiária. As suas relações recíprocas. Cidade e campo. As três grandes classes sociais. A troca entre elas. Circulação. Sistema de crédito (privado).

3) Síntese da sociedade burguesa na forma do Estado. Considerada em relação a si mesma. As classes “improdutivas”. Impostos. Dívida pública. Crédito público. A população. As colônias. Emigração.

4) Relação internacional da produção. Divisão internacional do trabalho. Troca internacional. Exportação e importação. Curso do câmbio.

5) O mercado mundial e as crises.[d]

Marx não chegou nem perto de concluir esse projeto. Na verdade, desenvolveu apenas alguns poucos desses tópicos de forma sistemática ou detalhada. E muitos deles – como o sistema de crédito e o sistema financeiro, as atividades coloniais, o Estado, as relações internacionais, o mercado mundial e suas crises – são absolutamente cruciais para a compreensão do capitalismo. Em seus volumosos escritos, há indicações de como tratar esses tópicos, como entender melhor o Estado, a sociedade civil, a imigração, o câmbio monetário e coisas do gênero. E, como procurei mostrar em meu livro Os limites do capital [e], é possível conjugar alguns dos fragmentos que Marx nos deixou a respeito desses tópicos para formar um conjunto compreensível. Mas é importante reconhecer que o aparato conceitual apresentado no início d’O capital carrega o fardo de assentar as bases desse projeto tão importante, mas incompleto.

O Livro I, como você verá, analisa o modo de produção capitalista do ponto de vista da produção, não do mercado nem do comércio global, mas exclusivamente da produção. O Livro II (nunca concluído) toma a perspectiva das relações de troca. O Livro III (também não concluído) concentra-se inicialmente na formação das crises como produto das contradições fundamentais do capitalismo; trata também de questões relativas a distribuição do excedente sob a forma do juro, retorno do capital financeiro, renda da terra, lucro do capital mercantil, tributos e outras questões do gênero. Assim, a análise desenvolvida no Livro I tem muitas lacunas, mas certamente há nela o bastante para entender como o modo de produção capitalista realmente funciona.

Isso nos leva de volta ao método de Marx. Uma das coisas mais importantes a entender num estudo cuidadoso do Livro I é como o método de Marx funciona. A meu ver, isso é tão importante quanto as proposições que ele deduz a respeito do funcionamento do capitalismo, pois, uma vez que se aprenda o método e se tenha prática em sua aplicação e confiança em seu poder, pode-se usá-lo para entender quase tudo.

É claro que esse método deriva da dialética, que é, como diz Marx no prefácio já citado, um método de investigação “que ainda não havia sido aplicado aos assuntos econômicos” (93). Ele também discute esse método dialético no posfácio à segunda edição. Embora suas ideias derivem de Hegel, o método dialético de Marx, “em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto” (90). Vem daí a célebre afirmação de que Marx inverteu a dialética hegeliana e colocou-a na posição certa, isto é, de pé.

Em certos aspectos, como veremos, isso não é exatamente verdade. Marx não se limitou a inverter o método dialético, ele o revolucionou. “Critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana há cerca de trinta anos”, diz ele, referindo-se a sua Crítica da filosofia do direito de Hegel [f]. Tal crítica foi o momento fundamental em que Marx redefiniu sua relação com a dialética hegeliana. Ele desaprova o fato de que a forma mistificada da dialética, tal como difundida por Hegel, tenha se tornado moda na Alemanha nos anos 1830 e 1840 e empenha-se em corrigi-la, a fim de que ela possa dar conta de “toda forma historicamente desenvolvida em seu estado fluido, em movimento”. Marx teve, portanto, de reconfigurar a dialética para que ela também pudesse apreender o “aspecto transiente” de uma sociedade. Em suma, a dialética tem de ser capaz de entender e representar processos em movimento, mudança e transformação. Tal dialética “não se deixa intimidar por nada e é, por essência, crítica e revolucionária” (91), precisamente por chegar ao cerne das transformações sociais, tanto atuais como potenciais.

O que Marx revela aqui é sua intenção de reinventar o método dialético para que este dê conta das relações graduais e dinâmicas entre os elementos que compõem o sistema capitalista. Ele tenciona fazer isso para capturar a fluidez e o movimento, porque, como veremos, a mutabilidade e o dinamismo do capitalismo o impressionam muito. Isso contradiz a reputação que invariavelmente acompanha Marx, descrito como um pensador estruturalista fixo e imóvel. O capital, no entanto, revela um Marx que fala continuamente de movimento e mudança – os processos – da circulação do capital, por exemplo. Portanto, ler Marx em seus próprios termos exige que você tenha sempre em mente aquilo que ele entende por “dialética”.

O problema, porém, é que Marx nunca escreveu um tratado sobre dialética e nunca explicou seu método dialético (embora dê indicações aqui e ali, como veremos). Assim, temos um aparente paradoxo: para entender o método dialético de Marx, você tem de ler O capital, porque ele é a fonte de sua prática real; mas, para entender O capital, você tem de entender o método dialético de Marx. Uma leitura cuidadosa d’O capital dará uma noção de como funciona esse método; quanto mais o ler, melhor você entenderá O capital como livro. Uma das coisas curiosas do nosso sistema de ensino, a meu ver, é que, quanto melhor for seu treinamento numa disciplina, menos habituado ao método dialético você será. De fato, as crianças pequenas são muito dialéticas, veem tudo em movimento, em contradição e transformação. Temos de fazer um esforço enorme para que elas deixem de pensar dialeticamente. O que Marx pretende é recuperar o poder intuitivo do método dialético, que permite compreender que tudo está em processo, tudo está em movimento. Ele não fala simplesmente de trabalho, mas do processo de trabalho. O capital não é uma coisa, mas um processo que só existe em movimento. Quando a circulação cessa, o valor desaparece e o sistema começa a desmoronar. Veja o que aconteceu depois do 11 de Setembro de 2001, em Nova York: tudo ficou paralisado. Os aviões pararam de voar, as pontes e estradas foram fechadas. Três dias depois, percebeu-se que o capitalismo desmoronaria se as coisas não voltassem a se movimentar. Então, de repente, o prefeito Giuliani e o presidente Bush pediram que a população sacasse seus cartões de crédito e fosse às compras, voltasse à Broadway, lotasse os restaurantes. Bush chegou a aparecer num comercial da indústria aeroviária para encorajar os norte-americanos a voltar a voar.

O capitalismo não é nada se não estiver em movimento. Marx admira muito isso e não se cansa de evocar o dinamismo transformador do capital. Por isso é tão estranho que seja caracterizado com tanta frequência como um pensador estático, que reduz o capitalismo a uma configuração estrutural. Não, o que Marx procura n’O capital é um aparato conceitual, uma estrutura profunda que explique como o movimento se desenvolve concretamente no interior de um modo de produção capitalista. Consequentemente, muitos de seus conceitos são formulados mais como relações do que como princípios isolados; eles se referem a uma atividade transformadora.

Assim, conhecer e apreciar o método dialético d’O capital é essencial para compreender Marx em seus próprios termos. Muitas pessoas, inclusive marxistas, discordariam disso. Os chamados marxistas analíticos – pensadores como G. A. Cohen, John Roemer e Robert Brenner – desprezam a dialética. Gostam de se denominar “marxistas sem lorotas”. Preferem transformar a argumentação de Marx numa série de proposições analíticas. Outros transformam seus argumentos num modelo causal de mundo. Há até uma interpretação positivista de Marx que permite testar sua teoria com dados empíricos. Em todos esses casos, porém, a dialética é desconsiderada.

Não estou dizendo com isso, em princípio, que os marxistas analíticos estejam errados nem que aqueles que fazem de Marx um construtor de modelos positivista estejam equivocados. Talvez estejam certos; mas insisto que os termos próprios de Marx são dialéticos, e isso nos obriga, portanto, a fazer uma leitura dialética d’O capital. Uma última questão: nosso objetivo é ler Marx em seus próprios termos, mas, na medida em que estou guiando essa leitura, esses termos serão, inevitavelmente, afetados por meus interesses e experiências. Dediquei grande parte de minha vida acadêmica a aplicar a teoria marxiana ao estudo da urbanização sob o capitalismo, do desenvolvimento geográfico desigual e do imperialismo, e é evidente que essa experiência afetou o modo como leio O capital. Para começar, essas preocupações são mais práticas do que filosóficas ou teórico-abstratas; minha abordagem sempre foi perguntar o que O capital pode nos ensinar a respeito de como a vida cotidiana é vivida nas grandes cidades produzidas pelo capitalismo. Durante os mais de trinta anos de contato que tive com esse texto, aconteceram muitas mudanças geográficas, históricas e sociais. Na verdade, uma das razões por que gosto de ensinar O capital todo ano é que sempre tenho de perguntar a mim mesmo como ele será lido, quais questões que antes passavam despercebidas chamarão minha atenção. Volto a Marx menos em busca de um guia do que de potenciais insights teóricos sobre mudanças geográficas, históricas e populacionais.

É claro que, nesse processo, minha compreensão do texto mudou. Na medida em que o clima histórico e intelectual nos coloca diante de questões e perigos aparentemente sem precedentes, o modo como lemos O capital também tem de mudar e se adaptar. Marx fala sobre esse processo de reformulação e reinterpretação necessárias. A teoria burguesa, observa ele, entendia o mundo de determinada maneira no século XVIII, mas a marcha da história tornou irrelevantes essa teoria e suas formulações teóricas (84- 6). As ideias têm de mudar ou se reconfigurar à medida que as circunstâncias mudam. Marx entendeu e representou o mundo capitalista de modo brilhante nos anos 1850 e 1860, mas o mundo mudou, e isso traz mais uma vez a pergunta: em que sentido esse texto pode ser aplicado ao nosso próprio tempo? Infelizmente, a meu ver, a contrarrevolução neoliberal que dominou o capitalismo global nos últimos trinta anos contribuiu muito para reproduzir mundialmente aquelas mesmas condições que Marx desconstruiu de maneira tão brilhante na Inglaterra dos anos 1850 e 1860. Por isso insiro nessas leituras alguns comentários tanto sobre a relevância d’O capital para o mundo atual quanto sobre a leitura mais adequada do texto às exigências de nossa época.

Mas, sobretudo, quero que você faça sua própria leitura d’O capital. Em outras palavras, espero que você estabeleça uma relação com o texto nos termos de sua experiência pessoal – intelectual, social, política – e aprenda com ele à sua maneira. Espero que tenha bons e esclarecedores momentos conversando com o texto, digamos assim, e deixando que ele converse de volta com você. Esse tipo de diálogo é um excelente exercício para tentar entender o que parece quase impossível.

Cabe a cada leitor traduzir O capital de modo que tenha sentido para sua vida. Não há – e não pode haver – uma interpretação definitiva, precisamente porque o mundo está em contínua mudança. Como provavelmente diria Marx, hic Rhodus, hic salta[g]! A bola é sua, chute!

[a] Na presente edição, as citações e a numeração das páginas correspondentes referem-se a: Karl Marx, O capital, Livro I (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013). As futuras referências a essa obra serão citadas apenas com indicação das páginas entre parênteses. (N. E.)

[b] O autor refere-se à “Carta de Marx a Arnold Ruge” de setembro de 1843, publicada nos Deutsch-Französische Jahrbücher [Anais Franco-Alemães] em fevereiro de 1844. Cf. Karl Marx, Sobre a questão judaica (São Paulo, Boitempo, 2010), p. 70-3. (N. T.)

[c] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista (São Paulo, Boitempo, 1998), p. 74. (N. E.)

[d] Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858 – Esboços da crítica da economia política (São Paulo, Boitempo, 2011), p. 61. (N. E.)

[e] São Paulo, Boitempo, no prelo. (N. E.)

[f] 2. ed., São Paulo, Boitempo, 2010. (N. E.)

[g] Referência a “Hic Rhodus, hic saltus” [Aqui é Rodes, salta aqui mesmo!], tradução latina de um trecho da fábula O atleta fanfarrão, de Esopo. Em O 18 de brumário de Luís Bonaparte (São Paulo, Boitempo, 2011), Marx emprega a citação modificada, em latim e em alemão (Hic Rodhus, hic salta! Hier ist die Rose, hier tanze! [Aqui está a rosa, dança agora!]), em alusão ao uso que Hegel faz da expressão no prefácio da Filosofia do direito. No caso presente, embora não se trate de uma referência a Hegel, Marx mantém a mesma forma modificada empregada em O 18 de brumário. (N. T.)

 Autor: David Harvey

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