quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Eu Maior

Já trilhei muitos caminhos a procura dessa indagação: Quem sou eu.  Mas como Ricardo Lindermann, do grupo Teosófico disse: "Mesmo que a gente chegue na luz, depois se pergunta como a perdeu de novo". Esse foi meu grande erro, achar que uma vez conquistada, porque realmente a vislumbrei por várias vezes, ela se eternizaria em mim, mas as duras penas aprendi que não é bem assim. Por isso, com a situação pela qual atravesso nesse momento, seria de bom alvitre voltar, humildemente, a trilhar meu caminho, dessa vez sem a pretensão de que ficarei na luz.

Tenho que me humildar. Reconhecer meu real tamanho e me por a caminhar novamente. Entender que a mata do caminho floresceram novamente e que tenho de começar tudo novamente. Não existe caminho conhecido. Sempre é uma nova experiência.


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

De que lado venha (Direita, Esquerda, Centro). Por favor, leia, é muito importante....


Os Descaminhos do Dinheiro: uma visão sistêmica

Ladislau Dowbor (Ladislau Dowbor, economista, é 
professor da PUC de São Paulo, e consultor de 
várias agências das NNUU. http://dowbor.org)

6 de dezembro de 2012

“A ideia que numa democracia você deveria poder
trocar a sua riqueza por maior influência sobre 
o que faz o governo é simplesmente errada”
 – Lawrence Lessig – Republic Lost: how 
money corrupts congress – and a plan to stop it
 – Twelve, New York, 2011, p. 313”
Lawrence Lessig


Resumo: O Brasil vive desde 2012 uma grande ofensiva política, promovida pela aliança entre as oligarquias tradicionais, o oligopólio da mídia e uma cunha no poder judiciário. O alvo, naturalmente, é o governo progressista que dirige o país desde 2003. O golpismo nunca saiu de cena na América Latina. Recentemente tivemos golpes na Venezuela, em Honduras e no Paraguai. A Argentina está sendo desestabilizada. No caso brasileiro, o golpismo se apoia em elevados sentimentos éticos, e justifica o movimento como luta contra a corrupção. Violências jurídicas a parte, a campanha navega numa ampla desinformação sobre como funciona a corrupção. No presente artigo, fizemos um exercício bastante simples, de explicitação dos mecanismos: a compra das eleições, o uso de juros oficiais, a cartelização do sistema financeiro, a apropriação do orçamento público, e o funcionamento dos paraísos fiscais, que asseguram segurança, segredo e rentabilidade ao dinheiro ilegal. A questão, na nossa interpretação, vai muito além do desvio do dinheiro: é a própria democracia que está sendo apropriada. O exemplo básico aqui analisado é o do Brasil, mas trata-se de todos nós.

Transformar o exercício da justiça em espetáculo midiático não é correto nem ético. Fazê-lo em nome da ética, menos ainda. Para muita gente, parece tratar-se de uma catarse política, canalização de ódios acumulados. Não se resolve grande coisa desta maneira. e gera-se sim dinâmicas perigosas. E sobre tudo, canaliza-se toda a energia contra pessoas, obscurecendo os vícios do sistema. O sistema agradece, e permanece. A realidade, é que há um imenso desconhecimento, por parte de não economistas, de como se dão os grandes vazamentos de recursos públicos.

1 – A compra das eleições

Bem, vamos por partes. Primeiro, a grande corrupção, a grande mesmo, aquela que é tão grande que se torna legal. Trata-se do financiamento de campanhas. A empresa que financia um candidato – um assento de deputado federal tipicamente custa 2,5 milhões de reais – tem interesses. Estes interesses se manifestam do lado das políticas que serão aprovadas, por exemplo contratos de construção de viadutos e de pistas para mais carros, ainda que se saiba que as cidades estão ficando paralisadas. As empreiteiras e as montadoras agradecem. Do lado do candidato, apenas assentado, já lhe aparece a preocupação com a dívida de campanha que ficou pendurada, e a necessidade de pensar na reeleição. Quatro anos passam rápido. Entre representar interesses legítimos do povo – por exemplo, mais transporte coletivo, mais saúde preventiva – e assegurar a próxima eleição, ele que estudou economia ou direito, e por tanto sabe fazer as contas e sabe quem manda, está preso numa sinuca.



O próprio custo das campanhas, quando estas viram uma indústria de marketing político, é cada vez mais descontrolado. Segundo The Economist, no caso dos EUA, os gastos com a eleição de 2004 foram de 2,5 bilhões de dólares, em 2010 foram de 4,5 bilhões, e a estimativa para 2012 é de 5,2 bilhões. Isto está “baseado na decisão da corte suprema em 2010  que permite que empresas e sindicatos gastem somas ilimitadas em marketing eleitoral”. Quanto mais cara a campanha, mais o processo é dominado por grandes contribuintes, e mais a política se vê colonizada. O resultado é a erosão da democracia. E resultam também custos muito mais elevados para todos, já que são repassados para o público através dos preços. Ver dados completos em The Economist, Of Mud and Money, September 8th 2012, p. 61; Sobre esta decisão da corte suprema americana, Hazel Henderson produziu uma excelente análise intitulada “Temos o melhor congresso que o dinheiro pode comprar” (We have the best congress money can buy)

Comentando os dados  dos gastos corporativos na campanha eleitoral de 2010, Robert Chesney e John Nichols, da universidade de Illinois, escrevem que os financiamentos corporativos “se traduziram numa virada espetacular para a direita: a captura da vida política por uma casta financeira e midiática mais poderosa do que qualquer partido ou candidato. Não se trata apenas de um novo capítulo no interminável romance entre o dinheiro e o poder,  mas de uma redefinição da própria política pela conjunção de dois fatores: o fim dos limites de doações eleitorais por parte das empresas e a renúncia por parte da imprensa ao exame dos conteúdos das campanhas. Resulta um sistema no qual um pequeno círculo de conselheiros mobiliza montantes surrealistas para orientar o voto para os seus clientes. Este ‘complexo eleitoral dinheiro-mídia’ constitui presentemente uma força temível, subtraída a qualquer forma de regulação, liberada de qualquer obrigação de prudência por uma imprensa que capitulou. Esta máquina é permanentemente mediada por cadeias comerciais de televisão que faturaram, em 2010, 3 bilhões de dólares graças à publicidade política”. Robert W.McChesney e John Nichols – Et les spots politiques ont envahi les écrans – Le Monde Diplomatique, Manière de Voir, n. 125, Où va l’Amérique, Octobre-Novembre 2012, p. 62 – A liberação do financiamento corporativo das campanhas eleitorais foi conseguida pelo lobby conservador Citizens United, junto à Corte Suprema dos Estados Unidos, em 21 de janeiro de 2010, em nome da “liberdade de expressão”.

No Brasil este sistema foi legalizado em governos anteriores. A lei que libera o financiamento das campanhas por interesses privados é de 1997. O financiamento está baseado na Lei 9504, de 1997 “As doações podem ser provenientes de recursos próprios (do candidato); de pessoas físicas, com limite de 10% do valor que declarou de patrimônio no ano anterior no Imposto de Renda; e de pessoas jurídicas, com limite de 2%, correspondente [à declaração] ao ano anterior”, explicou o  juiz Marco Antonio Martin Vargas, assessor da Presidência do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo.” – Revista Exame, 08/06/2010, Elaine Patricia da Cruz, Entenda o financiamento de campanha no Brasil.

Podem contribuir com até 2% do patrimônio, o que representa muito dinheiro. Os professores Wagner Pralon Mancuso e Bruno Speck, respectivamente da USP e da Unicamp, estudaram os impactos. “Os recursos empresariais ocupam o primeiro lugar entre as fontes de financiamento de campanhas eleitorais brasileiras. Em 2010, por exemplo, corresponderam a 74,4%, mais de R$ 2 bilhões, de todo o dinheiro aplicado nas eleições (dados do Tribunal Superior Eleitoral)”.“Pouquíssimos candidatos conseguem se eleger com pouco ou nenhum dinheiro”, comenta Mancuso, que coordena o projeto de pesquisa Poder econômico na política: a influência de financiadores eleitorais sobre a atuação parlamentar. Ver em Bruna Romão, Agência USP, http://mercadoetico.terra.com.br/arquivo/investimento-de-empresas-influencia-sucesso-em-eleicoes/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=mercado-etico-hoje

Oded Grajew resume bem o impacto: “O financiamento das campanhas é feito majoritariamente por empresas. Nas eleições de 2010, empresas doaram R$ 2,3 bilhões e foram responsáveis por 70% dos recursos para as campanhas dos deputados federais, 88% dos recursos dos senadores, 90% para os candidatos a governadores e 91% para os candidatos a presidente. Só 1% das empresas doadoras (479) fizeram 41% das doações e 10% das empresas foram responsáveis por 77% das doações. A quase totalidade dessas empresas tem negócios com governos e dependem muito dos políticos para realizar suas atividades. O que quase todas estas empresas esperam dos eleitos? Contratos e legislações em seus benefícios.”Oded Grajew é do Instituto Ethos, e do movimento Nossa São Paulo, na Folha de São Paulo, 18/11/2012

E a deformação é sistêmica: além de amarrar os futuros eleitos, quando uma empresa “contribui” e por tanto prepara o seu acesso privilegiado aos contratos públicos, as outras se vêm obrigadas a seguir o mesmo caminho, para não se verem alijadas. O candidato que não tiver acesso aos recursos, simplesmente não será eleito. Todos ficam amarrados. Começa a girar a grande quantidade de dinheiro no sistema eleitoral. Criminalizar as empresas, ou as pessoas, não vai resolver, ainda mais se os criminalizados são apenas de um lado do espectro político. É preciso corrigir o sistema.

Mas custos econômicos incomparavelmente maiores resultam do impacto indireto, pela deformação do processo decisório na máquina pública, apropriada por corporações. O resultado, no caso de São Paulo, por exemplo, de eleições municipais apropriadas por empreiteiras e montadoras, são duas horas e quarenta minutos que o cidadão médio perde no trânsito por dia. Só o tempo perdido, multiplicando as horas pelo PIB do cidadão paulistano e pelos 6,5 milhões que vão trabalhar diariamente, são 50 milhões de reais perdidos por dia. Se reduzirmos em uma hora o tempo perdido pelo trabalhador a cada dia, instalando por exemplo corredores de ônibus e mais linhas de metrô. serão 20 milhões economizados por dia, 6 bilhões por ano se contarmos os dias úteis. Sem falar da gasolina, do seguro do carro, das multas, das doenças respiratórias e cardíacas e assim por diante. E estamos falando de São Paulo, mas temos Porto Alegre, Rio de Janeiro e tantos outros centros. É muito dinheiro. Significa perda de produtividade sistêmica, aumento do custo-Brasil.

Este tipo de corrupção leva a que se deformem radicalmente as prioridades do país, que se construam elefantes brancos. A deformação das prioridades mediante desvio dos recursos públicos daquilo que é útil em termos de qualidade de vida para o que é mais interessante em termos de contratos empresariais, gera um círculo vicioso, pois financia a sua reprodução.

Uma dimensão importante deste círculo vicioso, e que resulta diretamente do processo, é o sobre-faturamento. Quanto mais se eleva o custo financeiro das campanhas, conforme vimos acima com os exemplos americano e brasileiro, mais a pressão empresarial sobre os políticos se concentra em grandes empresas. Quando são poucas, e poderosas, e com muitos laços políticos, a tendência é a distribuição organizada dos contratos, o que por sua vez reduz a concorrência pública a um simulacro, e permite elevar radicalmente o custo dos grandes contratos. Os lucros assim adquiridos permitirão financiar a campanha seguinte.

Se juntarmos o crescimento do custo das campanhas, os custos do sobre-faturamento das obras, e sobre tudo o custo da deformação das grandes opções de uso dos recursos públicos, estamos falando em muitas dezenas de bilhões de reais. Pior: corrói o processo democrático, ao gerar uma perda de confiança popular nos processos democráticos em geral.

Não que não devam ser veiculados os interesses de diversos agentes econômicos. Mas para a isto existem as associações de classe e diversas formas de articulação. A FIESP, por exemplo, articula os interesses da classe industrial do Estado de São Paulo, e é poderosa. É a forma correta de exercer a sua função, de canalizar interesses privados. O voto deve representar cidadãos. Quando se deforma o processo eleitoral através de grandes somas de dinheiro, é o processo democrático que é deformado.

A moral da história é simples. Comprar votos é ilegal. Vincular o candidato com dinheiro não é ilegal. Já comprar o voto do candidato eleito é de novo ilegal. A conclusão é óbvia: vincula-se os interesses do candidato à empresa, o que é legal, e tem-se por atacado quatro anos de votação do candidato já eleito, sem precisar seduzi-lo a cada mês. O absurdo não é inevitável. Na França, a totalidade dos gastos pelo conjunto dos 10 candidatos à presidência em 2012 foi de 74,2 milhões de euros, 12 vezes menos que no Brasil. Na Polônia, os candidatos podem receber até o equivalente de 4 mil dólares, de pessoas físicas. Contribuições de pessoas jurídicas são proibidas. No Canadá há teto por tipo de posto almejado. Há muitas soluções neste plano. Nenhuma resolve todo o problema da corrupção, mas é uma condição prévia necessária. E sai muito mais barato para todos nós.

A grande corrupção gera a sua própria legalidade. Já escrevia Rousseau, no seu Contrato Social, em 1762, texto que hoje cumpre 250 anos: “O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o dono, se não transformar a sua força em direito e a obediência em dever” (“Le plus fort n’est jamais assez fort pour être toujours le maître, s’il ne transforme sa force en droit et l’obéissance en devoir”. Du Contrat Social, 1762. “Maître” em francês é muito mais forte do que “mestre” em português, implica força, controle. Em 1997, transformou-se o poder financeiro em direito. O direito de influenciar as leis, às quais seremos todos submetidos.  Ético mesmo, é reformular o sistema, e acompanhar os países que evoluíram para regras do jogo mais inteligentes, e limitaram drasticamente o financiamento corporativo das campanhas.

2 – A armadilha da dívida pública

Estamos aqui elencando alguns dos principais mecanismos da apropriação privada do dinheiro público. A compra das eleições, que vimos acima, permite colocar em postos de comando da máquina pública pessoas cujos interesses estão diretamente vinculados a grupos empresariais. Uma imagem clara pode ser vista na ação da bancada ruralista sobre o direito de desmatar. Mas constituiu-se igualmente a bancada das empreiteiras, das montadoras, da grande mídia, dos bancos e assim por diante. Reduz-se drasticamente o que poderíamos chamar de bancada do cidadão. No congresso, instala-se o clima de “negócios”.

Em termos gerais, isto leva a mudanças das regras do jogo em função de interesses privados, em detrimento dos interesses públicos. Os interesses privados deixam assim em parte de estar submetidos às leis do mercado – concorrência, e que o melhor vença –  e passam a navegar, legalmente, nos canais de acesso privilegiado aos recursos públicos. Em termos econômicos, ao somarmos os custos para a sociedade dos gastos com as próprias campanhas eleitorais, do sobre-faturamento de obras e da deformação das prioridades nos investimentos – veja-se em particular os imensos custos da prioridade ao automóvel nas cidades e da opção rodoviária para cargas – chegamos a somas extremamente elevadas, que resultam da corrupção da própria legalidade. Em termos políticos, os custos podem ser ainda maiores, pois a apropriação da coisa pública por interesses privados deforma sem dúvida o processo democrático.

A maior apropriação privada de recursos públicos no Brasil, além de legal, criou a sua justificação ética, a de estar combatendo a inflação: trata-se da taxa Selic. Como muitos sabem, e a imensa maioria não sabe, a Selic é a taxa de juros que o governo paga aos que aplicam dinheiro em títulos do governo, gerando a dívida pública. A invenção da taxa Selic elevada também é uma inciativa dos governos nos anos 1990. Tipicamente, passou-se a pagar, a partir de 1996, já com inflação baixa, entre 25 e 30% sobre a dívida pública. Os intermediários financeiros passaram a dispor de um sistema formal e oficial de acesso aos nossos impostos. Com isto o governo comprava, com os nossos impostos, o apoio da poderosa classe de rentistas e dos grandes bancos do país, inclusive dos grupos financeiros transnacionais. Assim os governantes organizaram a transferência massiva de recursos públicos para grupos financeiros privados.

Amir Khair explicita a origem do mecanismo: “O Copom é que estabelece a Selic. Foi fixada pela primeira vez em 1º de julho de 1996 em 25,3% ao ano e permaneceu em patamar elevado passando pelo máximo de 45% em março de 1999, para iniciar o regime de metas de inflação. Só foi ficar abaixo de 15% a partir de julho de 2006, mas sempre em dois dígitos até junho de 2009, quando devido à crise foi mantida entre 8,75% e 10,0% durante um ano. A partir de junho de 2010, com a forte elevação dos preços internacionais das commodities, passa novamente a subir até atingir 12,5% em julho de 2011 e a partir de um ano atrás passou a cair até os 7,5% atuais.” 

Como funciona? Primeiro, eleva-se drasticamente a taxa Selic, em nome de se proteger a população da inflação. O argumento é tecnicamente errado, mas numa população traumatizada pela hiperinflação, há até um sentimento de alívio. Um bom brasileiro poupador coloca a sua poupança no Banco, aplica em algum produto financeiro que vai lhe render, por exemplo, 10% ao ano. O Banco aplica este dinheiro em títulos do governo que pagam por exemplo 25%. A diferença é embolsada pelo banco, pois o governo lhe paga estes 25% com o dinheiro do contribuinte. A fase da Selic elevada gerou enormes transferências. Estamos falando de centenas de bilhões de reais.

De onde o governo consegue tirar este dinheiro? Naturalmente, dos impostos, pagos por este mesmo depositante. Este, portanto, de um bolso tira o dinheiro e o coloca no banco, e de outro bolso tira mais  dinheiro para pagar os impostos que o banco receberá pelo prazer de ter a sua poupança. Não há complicações, ele recebe 10%, mas paga 25%. Uma monumental transferência de recursos públicos para rentistas, que além de nos custar muito dinheiro, desobriga os bancos de fazerem investimentos produtivos que gerariam produto e emprego. É tão mais simples aplicar nos títulos, liquidez total, risco zero. E realizar investimentos produtivos, financiando por exemplo uma fábrica de sapatos, envolve análise de projetos, seguimento, enfim, envolve atividades que vão além de aplicações financeiras.

Acostumamo-nos a que tipicamente 5% do nosso PIB fosse desviado via governo para intermediários financeiros, sem que produzissem nada, pelo contrário, desviavam-se os recursos do investimento produtivo para a aplicação financeira. Para cobrir os juros sobre a dívida, o governo FHC elevou a carga tributária de 26% para 32% do PIB. De algum lugar tinha de vir o dinheiro.

No momento em que Lula assume o governo, em 2003, a taxa Selic está em 24,5%. Em junho de 2002, a dívida pública tinha chegado a 60% do PIB, hoje (2012) está mais próxima de 35%, e os juros pagos sobre a dívida baixaram para 7,5%, mas o estoque da dívida é maior. Foi fácil abrir a torneira, fechá-la é muito mais complicado.

A partir do governo Lula o sistema foi sendo gradualmente controlado. Ainda assim, é uma transferência de dinheiro público para não-produtores que se conta em centenas de bilhões de reais. Apoio político comprado com dinheiro público, mas rigorosamente legal. Em vez de ir contra a lei, é mais prático fazer a lei ir ao nosso encontro.

No braço de ferro que hoje se desenrola, a cada vez que se baixa um meio ponto, o mundo financeiro grita na mídia, todos ameaçam com a inflação, pedem “responsabilidade” ao governo. A evolução é resumida por Amir Khair: “A dívida líquida do setor público foi marcadamente influenciada pela Selic. No início do governo FHC estava em 28,0% do PIB e mesmo com a mega venda de patrimônio público com privatizações, ao final do governo chegou a 60,4%. A elevada Selic foi a responsável por isso. No final do governo Lula tinha baixado para 39,2% e em julho estava em 34,9%. Caso a Selic continue caindo é possível que ao final do governo Dilma seja possível retornar próximo da que estava no início do governo FHC”.

Como foi possível manter-se durante tanto tempo uma transferência gigantesca de recursos públicos para intermediários financeiros? O “núcleo” do mecanismo foi bem explicitado por J. Stiglitz, na análise que lhe valeu o “nobel” de economia: a assimetria de informação. Em termos mais explícitos, pouquíssimas pessoas entendem de mecanismos financeiros. E os que têm por profissão manejar apenas dinheiro, entendem tudo.

Vimos o excelente negócio que realizam as corporações privadas ao investirem em campanhas políticas. Investimento de alta rentabilidade. E vimos como rende obter do governo uma gigantesca fonte de transferências chamada Selic, ancorada numa instituição legal chamada Conselho Monetário, e com uma proteção ética de ganhar tanto dinheiro em nome de se proteger o povo da inflação. As melhores apropriações se fazem com elevado espírito ético. Estamos falando aqui em algumas centenas de bilhões de reais desviados do processo produtivo. Volumes de deixar pálido qualquer jurista, sobre tudo se lembrar do capítulo da constituição sobre a ordem econômica e financeira.


3 -A manipulação dos juros comerciais

Estamos, aqui, indo por partes, explorando os meandros da apropriação do dinheiro público, mecanismos relativamente simples, mas que por alguma razão não aparecem na mídia e que o público, que entra com a matéria prima, não entende.

Na raiz, conforme vimos, está a compra das eleições, que gera a apropriação indevida do poder legislativo por grandes grupos econômicos, o que por sua vez tende a gerar bases legais para ações ilegítimas. Vimos em seguida como funciona um dreno impressionante de recursos que esta legalidade gerou, através das elevadíssimas taxas Selic. Foram centenas de bilhões de reais, apropriados essencialmente por intermediários financeiros, e os chamados “rentistas”, que vivem do que o dinheiro rende, não da produção que dá substância ao dinheiro.

Os intermediários financeiros e rentistas não se contentam com a Selic, taxa de juros oficial sobre a dívida pública. Recorrem a um segundo mecanismo que é a fixação de elevadas taxas de juros ao tomador final, por bancos comerciais, mecanismo diferente da taxa Selic, tanto assim é que a Selic baixou radicalmente frente aos 25-30% da fase FHC para os 7,25% atuais, sem que houvesse redução significativa dos juros dos bancos comerciais.

Naturalmente, os bancos comerciais, como entidades privadas, afirmam que são livres de praticar os juros que querem. A coisa não é assim, por uma razão simples: como trabalham com dinheiro do público, e não dinheiro deles, devem seguir regras definidas pelo Banco Central, e mesmo um banco privado precisa de uma carta patente que o autorize a funcionar dentro de certas regras. Estas regras, naturalmente, vão depender da capacidade de pressão política.

Como se trata de dinheiro do público apropriado diretamente pelos intermediários financeiros, sem mediação do governo, poderíamos achar que não é desvio de dinheiro. De certa forma, quando tiram o nosso dinheiro sem a ajuda de um político, seria por assim dizer mais limpo. Habilidade de um lado, ingenuidade ou impotência do outro, mas não corrupção. Essencial para nós, é que sustentar no Brasil juros que são tipicamente dez vezes (dez vezes, não dez por centos a mais) relativamente aos juros praticados internacionalmente, só pode ser realizado mediante apoio político. E como durante longo tempo tivemos banqueiros na presidência do Banco Central, montou-se  mais um sistema impressionante de legalização do desvio do nosso dinheiro. Esta “ponte”, entre o político e o comercial, precisa ser explicitada (Corruption “has usually been interpreted in a narrow way, notably by focusing excessively on the public sector, and ignoring the private sector. The World Bank has en even narrower approach, defining corruption as ‘the abuse of public office for private gain’. This focus on the public sector as the only arena for corruption is not just arbitrary. It is wrong, and indeed pernicious”.  Corruption and the offshore interface, Tax Justice Network, www.taxjustice.net/cms/front_content.php?idcat=100)

A nossa constituição, no artigo 170º, define como princípios da ordem econômica e financeira, entre outros, a função social da propriedade (III) e a livre concorrência (IV). O artigo 173º no parágrafo 4º estipula que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.” O parágrafo 5 é ainda mais explícito: “A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular”. Cartel é crime. Lucro exorbitante sem contribuição correspondente produtiva será “reprimido pela lei” com “punições compatíveis”.

O estudo do Ipea mostra que a taxa real de juros para pessoa física (descontada a inflação) cobrada pelo HSBC no Brasil é de 63,42%, quando é de 6,60% no mesmo banco para a mesma linha de crédito no Reino Unido. Para o Santander, as cifras correspondentes são 55,74% e 10,81%. Para o Citibank são 55,74% e 7,28%  O Itaú cobra sólidos 63,5%. Para pessoa jurídica, área vital porque se trataria de fomento a atividades produtivas, a situação é igualmente absurda. Para pessoa jurídica, o HSBC, por exemplo, cobra 40,36% no Brasil, e 7,86 no Reino Unido.


Comenta o estudo do Ipea: “Para empréstimos à pessoa física, o diferencial chega a ser de quase 10 vezes mais elevado para o brasileiro em relação ao crédito equivalente no exterior. Para as pessoas jurídicas, conforme aponta a tabela 3, os diferenciais também são dignos de atenção, sendo prejudiciais para o Brasil. Para empréstimos à pessoa jurídica, a diferença de custo é menor, mas, mesmo assim, é mais de 4 vezes maior para o brasileiro.”

O Banco Itaú teve em 2011 um lucro líquido de 14,5 bilhões, montante da mesma ordem de grandeza que o Bolsa Família que resgata da pobreza cerca de 50 milhões de pessoas. O lucro do Itaú vai para muito poucas famílias. O banco Santander (ramo brasileiro) cobra 146% no cheque especial no Brasil, enquanto o Santander na Espanha cobra 0% (zero por cento) por seis meses até cinco mil euros. O gigante mundial que é o Santander tem no Brasil 25% do seu lucro global. Os ganhos dos grupos estrangeiros no Brasil sustentam assim as suas matrizes.

A situação é escorregadia. Se um economista disser que os grandes bancos comerciais no Brasil formaram um cartel, fica ele sujeito a ser processado, pois não terá como puxar o documento de um acordo assinado pelos membros do cartel. Aliás ninguém, obviamente, assina um papel assim. Então em termos jurídicos, quem afirmar que há um cartel está na ilegalidade, e hoje temos todos um saudável receio do que os bancos podem fazer através de procedimentos judiciais. Por outro lado, sendo economista, se disser aos seus alunos de economia que não há cartel, será considerarão um idiota, porque o sol não se tapa com peneira. Os dados, aqui, são absolutamente claros.

Para quem faltou à aula de economia, um dado básico: a intermediação financeira é uma atividade meio. Não alimenta nem veste ninguém. Mas se agregar as nossas poupanças para financiar uma fábrica de sapatos, por exemplo, e com isto gerar investimento, produção e empregos, está plenamente justificada. Os lucros da fábrica permitirão a remuneração da iniciativa, a modesta remuneração da nossa poupança, e o lucro financeiro do intermediário. Além de, evidentemente, aumentar a oferta de sapatos. Mas tudo está nos montantes. O financiamento devidamente regulado capitaliza as atividades econômicas, a agiotagem as descapitaliza.

Quando se “facilita” a compra a prazo, se o juro é elevado, por exemplo de 102% como é o praticado para pessoa física, as pessoas irão comprar com uma prestação “que cabe no bolso”, porque são pobres ou não entendem de juros, mas no conjunto a metade apenas do dinheiro que gastam irá para pagar o produtor, por exemplo de uma geladeira, e a outra metade servirá para pagar juros. O consumidor poderá comprar apenas a metade do que é a sua capacidade de compra real, e o produtor receberá muito pouco pela geladeira que produziu. O intermediário ganhará a metade de todo o valor, sem ter produzido nada. Isto se chama economia do pedágio.

O caso dos cartões de crédito deixa isto bem claro. Nota de Lucianne Carneiro em O Globo Economia compara o juro médio sobre cartão de crédito no Brasil, de 238% ao ano, com os 16,89%  nos  EUA  e 18,7% no Reino Unido. Não há como explicar uma diferença destas com “mecanismos de mercado” É agiotagem mesmo. O resultado é uma sangria absurda da capacidade de compra. Ao fazer todos os que entram neste tipo de crédito pagarem muito mais pelos produtos, gera-se um impacto forte sobre os preços finais. E nos dizem tranquilamente que juros altos nos protegem da inflação. O resultado final são dificuldades para o consumidor e para o produtor, e lucros exorbitantes para os intermediários. Juros de 101,68% para pessoa física e de 50,06% para pessoa jurídica travam tanto o investimento como o consumo. A ANEFAC apresenta os dados completos:

ANEFAC, Pesquisa de Juros, setembro de 2012 – A monstruosidade destas taxas levou a que os intermediários financeiros passassem a apresentar os juros sob forma mensal. No caso, os 101,68% são apresentados como 6,02% ao mês, e 50,06% como 3,44%. Tecnicamente não é errado, mas permite disfarçar o caráter composto dos juros, o que na prática engana as pessoas. Ninguém entende de matemática financeira. É uma forma eficiente de  reduzir transparência.   http://www.anefac.com.br/pesquisajuros/2012/pesquisa_agosto_2012.pdf . A ANEFAC, Associação Nacional de Executivos de Finanças, Atuárias e Contábeis, não tem nada de subversivo

Lucros financeiros como do Itaú em 2011, 14,5 bilhões de reais, constituem custos, pagos pela sociedade, sob forma de consumo retraído por parte consumidor e de lucro menor (quando não quebra) por parte do produtor. A intermediação financeira é necessária, mas quando se usa o oligopólio para fixar juros estratosféricos, o intermediário vira atravessador. Em vez de fomentar, cobra pedágio. Em vez de gerar efeitos multiplicadores, trava a economia, ao punir o produtor e o consumidor. Os grupos internacionais têm vantagens, e buscarão dinheiro no exterior através das suas matrizes, com custos muito menores, inclusive para comprar empresas nacionais. Para o parque produtivo nacional, é desastroso.

No conjunto, trata-se de um desvio de dinheiro da economia real, via uma forma institucional ilegal, que é a “dominação dos mercados, eliminação da concorrência e  aumento arbitrário dos lucros.” que a Constituição condena em termos inequívocos. Frente aos números, há alguma dúvida quanto à ilegalidade? Não há notícias de julgamento a este respeito, e sim muitas denúncias no Procon, Idec e outras instituições, e milhões pessoas se debatendo em dificuldades. O Serasa-Experian, hoje empresa multinacional, guardiã da moralidade financeira, decretará que brasileiros passam a ter o nome sujo, ou seja, punirá quem não conseguiu pagar 238%, e não quem os cobra.

Na realidade, esta situação se mantém pela base política de que dispõe o poderoso setor financeiro, e o conjunto da classe dos rentistas. A base política é mantida e reproduzida pelos mesmos mecanismos de contribuições eleitorais, além de posições de força conquistadas no Banco Central e no Copom. Para que não se mude a situação, é essencial que muitos deputados, senadores e funcionários de outras áreas, que não menciono não por decoro mas por prudência, sejam devidamente financiados.

O problema do cartel é que, como no caso dos impostos, não temos escolha. Como todos cobram mais ou menos os mesmos juros e as mesmas tarifas, mudar de banco não resolve grande coisa, e gera dificuldades burocráticas. A massa de empregados no país é paga no banco que fez um acordo com a empresa, e não tem muita escolha. O resultado será uma economia estagnada, porque os agentes privados financeiros preferem trabalhar com papéis de que fazer investimento, ou seja, preencher a função social da propriedade prevista na Constituição.

No conjunto, permite-se que no Brasil se ganhe muito dinheiro mesmo não produzindo, e sim intermediando o esforço dos outros. Alguma semelhança com outros mecanismos de apropriação indevida de recursos? Mais bilhões.

No braço de ferro que hoje se desenrola (2012), o governo está utilizando os bancos oficiais para introduzir gradualmente mecanismos de concorrência, baixando os juros pagos pelos tomadores de empréstimos. Foi aprovada uma lei que facilita ao usuário mudar de banco. O crédito em consignação que o governo instituiu permite acesso a juros mais baratos no banco, para comprar à vista no comércio. A própria Selic foi drasticamente reduzida, de 24,5% em 2002 para 7,5% em 2012, o que força gradualmente os bancos comerciais a procurar investimentos produtivos. A capacidade do governo de enfrentar processos de cartelização foi reforçada (o novo CADE). Mas a lentidão do processo mostra a força da resistência. É a lenta e penosa batalha pela transferência dos recursos apropriados pelos rentistas e intermediários em geral, para os setores produtivos e os consumidores.

O Brasil, evidentemente, não está sozinho nesta luta pelo uso apropriado das nossas poupanças. Na área internacional, os grandes grupos financeiros utilizam outros mecanismos, como alavancagem, carry trade, High Frequency Trading, arbitragem, fraudes na Libor e na Euribor e outros. Estes grupos criaram, através do controle de parlamentares, a sua própria legalidade, por exemplo com a eliminação da legislação Glass-Steagall e a diluição da lei Dodd-Frank nos Estados Unidos.

Para um rápido panorama de procedimentos ilegais na esfera da intermediação financeira em outros países, ver o dossiê organizado por Carta Maior, http://cartamaior.com.br/templates/index.cfm?home_id=139&alterarHomeAtual=1 , bem como o estudo sobre a gestão dos 21 trilhões de dólares de dinheiro em paraísos fiscais em http://criseoportunidade.wordpress.com/2012/09/12/estimating-the-price-of-offshore/ . Sobre as tentativas atuais, por parte dos Estados Unidos, de reformar o sistema e criar procedimentos financeiros onde a legalidade volte a se aproximar da legitimidade, ver o excelente estudo de Matt Taibbi, How Wall Street Killed Financial Reform – http://criseoportunidade.wordpress.com/2012/07/23/how-wall-street-killed-financial-reform/

O objetivo a perseguir é claro: transformar o dreno das nossas poupanças em financiamento da economia real e fomento de atividades produtivas, reintroduzindo mecanismos de concorrência e de transparência, através de regulação pública adequada. Isto envolve o resgate da dimensão pública do Estado. Quanto ao judiciário, bastaria seguir a Constituição.

4 – A manipulação do orçamento: emendas parlamentares

O fígado não é bom conselheiro, ainda que, tanto em política como em religião, quando mal compreendidos, tenda a ser mais utilizado do que o cérebro. As ideologias, em particular, nos permitem ter certezas sem que precisemos nos dar ao trabalho de entender. Temos de resgatar o bom-senso, e isto inclui aceitar as nossas dimensões frequentemente pouco racionais.

O problema, quando se permite a apropriação privada de espaços públicos, em particular dos legislativos, é que atividades que não são legítimas ou que possam ser perniciosas para a sociedade passam a ser legais. Vimos isto com a lei que permite a compra corporativa das eleições, as transferências baseadas na taxa Selic, a adoção de juros comerciais surrealistas, a agiotagem legalizada. As emendas parlamentares constituem  outro bom exemplo desta deformação da política.

Era natural que a nossa Constituição permitisse que o legislativo introduza alterações no orçamento proposto pelo executivo. A lei do orçamento, afinal, é uma das principais peças do governo, indica onde serão alocados os recursos, materializa as grandes opções. O processo de aprovação da peça orçamentária, no entanto, sofre duas grandes deformações.

A principal, como vimos em texto anterior, é a pressão para que se aloquem recursos prioritariamente a determinadas grandes obras propostas pelas empreiteiras, que se priorizem as estradas rodoviárias em vez do transporte ferroviário ou aquático, o agronegócio em vez da agricultura familiar, a grande empresa em vez da pequena e assim por diante. São deformações embasadas, conforme vimos, no congresso que temos: em virtude do financiamento corporativo das campanhas, temos uma bancada ruralista, das empreiteiras, das montadoras, dos grandes bancos, da grande mídia, e ao fim e ao cabo muito pouca bancada do cidadão, das pequenas e médias empresas, dos pequenos municípios, daqueles em suma que não têm como adquirir os “seus”  políticos. As deformações geram o essencial do chamado “custo Brasil”, que onera toda a sociedade, em proveito de alguns grupos.

Um exemplo ajuda. De norte a sul do país, os nossos centros econômicos são quase todos portuários, inclusive no sistema São Paulo-Santos. Transportar por água, em grandes distâncias e para grandes volumes, é como ordem de grandeza seis vezes mais barato por tonelada-quilómetro do que transportar por caminhão. As construtoras de estrada, as montadoras de caminhões, as redes de combustível e tantos outros, com fortíssima representação no congresso, agradecem. Isto é custo Brasil. Para o produtor, são custos externos que reduzem a sua competitividade.

A segunda deformação surge não quando se pressiona no legislativo por grandes orientações, e sim por pequenas vantagens. Um legislador calcula, por exemplo, que se conseguir aquela ponte para a sua cidade, não precisará nem gastar com a campanha para se tornar prefeito no próximo ciclo eleitoral. Poderá espalhar aos quatro ventos que “eu trouxe” determinada obra. E em geral é obra mesmo, pois é visível, tem localização bem determinada.

Como funciona? “Em 1993, veio à tona o escândalo que ficou conhecido como ‘anões do orçamento’. Naquela ocasião, os parlamentares indicavam emendas que propunham a alocação de recursos que deveriam ser destinados para entidades filantrópicas ligadas a parentes ou laranjas. Além disso, verificou-se a inclusão de grandes obras no orçamento em face de acerto com as empreiteiras beneficiadas”. A política não é uma ilha, a empreiteira agradece.

No caso da emenda, não se dá dinheiro ao legislador, gera-se um favor que lhe dispensará gastos com a próxima eleição. Com 25 emendas por parlamentar, os volumes se tornam muito significativos. No caso das emendas por bancadas, os deputados apresentam coletivamente e depois repartem, são as chamadas “rachadinhas”. A criatividade reina. Marcos Mognatti apresenta os números de 8.807 emendas, valendo 15,2 bilhões de reais, no orçamento da União em 2007. Ao aceitar (ou não) a emenda proposta, o executivo tem na mão o poder de assegurar ou não o futuro político do legislador. Cômoda mas escandalosa ruptura da divisão de poderes, fonte de uma corrupção sistêmica permanente.

O papel do legislativo está na nossa Constituição. No artigo 74º, reza a missão de “avaliar o cumprimento das metas previstas no plano plurianual, a execução dos programas de governo e dos orçamentos da União”, bem como de “comprovar a legalidade e avaliar os resultados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária” etc. Não há nenhuma base legal para o legislativo se substituir ao ministério dos transportes, e substituir a necessária coerência da peça orçamentária por uma colcha de retalho de interesses fragmentados. Escolher qual ponte será construída, planejar uma visão integrada de transportes, fazer os estudos que permitam definir as prioridades técnicas, é papel do executivo. “A iniciativa legislativa foi conferida ao Poder Executivo. Portanto, cabe a ele definir a forma de utilização dos recursos. Deixar parte dos recursos para o Poder Legislativo dispor da forma que lhe convier representa usurpação da atribuição  conferida ao Poder Executivo” Túlio Cambraia, Emendas ao projeto de lei orçamentária anual, Brasília, 2011, (p.31) – http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/orcamentobrasil/orcamentouniao/estudos/2011/artigo022011.pdf

Há razões, compreensíveis, que obrigam municípios pequenos a recorrer a legisladores para obter determinadas obras. “A baixa capacidade fiscal dos municípios brasileiros, e a visão de que os parlamentares têm por dever de ofício levar recursos – entenda-se obras – para suas bases eleitorais, dificulta uma discussão mais ampla dentro do Congresso para que se modifique o foco das emendas parlamentares, para que não mais sejam classificadas como paroquiais.” O mesmo Mognatti apresenta em tabela o quanto os pequenos municípios dependem das transferências “de cima”. Levar recursos a estes municípios é bom, mas o objetivo legítimo é evidentemente de se reforçar as transferências formais, e não a fragmentar o orçamento por demandas picadas. Marcos Cesar Farias de Mognatti, Transparência e controle na execução das emendas parlamentares ao orçamento da União, TCU,, Brasília 2008, p. 71; a tabela 6 está na p. 45 do documento É importante lembrar que uma maior descentralização de recursos, com forte injeção de capacitação em gestão local, permite a melhoria das condições de vida dos pequenos municípios, gerando formas participativas locais e redução de burocracias. Cerca de 90% dos municípios no Brasil são pequenos. A este respeito, ver o nosso O Que é Poder Local, Ed. Brasiliense, http://dowbor.org/08podlocal.doc

O fato é que, a partir dos anos 1990, a prática se generalizou, e hoje grande parte do debate sobre a peça orçamentária proposta não versa sobre as prioridades dos transportes ou da educação, mas sobre as demandas picadas que representam muito mais a estratégia de sobrevivência de determinado representante público, do que a estratégia de desenvolvimento que o país ou uma região precisa. Imensos recursos são assim desviados dos seus fins sistemicamente mais adequados, e, ponto importante, todo o processo de cooptação de numerosos representantes, generalizado nos anos 1990,  tornou-se prática “aceita”. Ou pelo menos, “legalizada” pela prática cotidiana dos diversos níveis legislativos do país. De certa forma, o “comprovar a legalidade e avaliar os resultados” virou um mercado persa.

Aqui começa uma situação bastante confusa. O homem público não se apropriou de dinheiro público, não fez, por exemplo, como faziam tantos coronéis, obras na sua fazenda com dinheiro público. A construção da ponte, mesmo que destoe do plano geral de expansão da infraestrutura de transportes, pode ser útil. No entanto, ao não ser uma obra do governo em geral mas um “aporte” bem identificado de quem “trouxe” a ponte, geram-se vantagens pessoais evidentes, inclusive com redução dos gastos eleitorais na próxima disputa. Isto nos traz para o problema central dos limites entre vantagens pessoais e vantagens políticas. Quando as fronteiras são confusas, o convite a ultrapassá-las é claro.

Não temos o monopólio dos descaminhos do dinheiro. Lessig cita um senador americano, Russell B. Long, segundo o qual “apenas um fio de cabelo separa propinas e contribuições”. A França teve há alguns anos um problema de “contribuições” da empresa Total de petróleo para vários membros do governo, no sentido de obter decisões favoráveis à sua expansão. Quando estourou o escândalo, depois de muita lavagem de roupa, houve o que me pareceu serem medidas de bom senso.

Em resumo, a apropriação de dinheiro público para fins pessoais, ou seja, o pagamento ou recebimento de propinas que permitem comprar um belo sítio, ou arrumar a piscina da casa, é claramente definido como roubo. É roubar dinheiro que, por ser público, é dinheiro dos outros. Endureceram as leis relativas a este tipo de prática, tolerância zero.

Este tipo de ação foi claramente distinguido do empurra-empurra de vantagens para que seja aprovada uma lei. Um membro do governo considera, por exemplo, que é essencial se alterar determinada legislação sobre políticas públicas de saúde. Sabe que há oposição de outros partidos, apoio do seu, e um espaço significativo, frequentemente chamado de “baixo clero”, que vai optar por vantagens indiretas que este projeto lhe possa trazer. Ou ainda, vantagens diretas. Os promotores e opositores inicialmente se comportam elegantemente, trocando argumentos de alto nível político. Nos finalmente, estarão passando rasteiras abomináveis, sempre com a convicção que o baixo nível foi originado no adversário. E se faltam dois votos, e estes dois deputados precisam obter determinada vantagem… No baixo clero, não se faz ponto sem nó.

É essencial fazer aqui com clareza esta distinção. Há gestores públicos que batalham a mudança de leis que, segundo a sua convicção, precisam ser alteradas, e passam além da legalidade para que a lei seja alterada, sabendo perfeitamente que há um segmento decisivo no legislativo que optará por quem lhe assegure mais vantagens. E que os seus adversários políticos também estão concedendo estas vantagens. Não devem estes representantes ou gestores públicos ser colocados no mesmo nível dos que simplesmente se apropriam de dinheiro público para fins privados. Este tipo de atividade tem de ser combatido? Sem dúvida. Mas através das reformas políticas, e não da criminalização de uns e branqueamento dos outros.

A melhor imagem aqui é quando, no jogo de futebol, uma bola vai ser centrada na área, onde há um amontoado de jogadores disputando a cabeçada decisiva. Ao ver a saraivada de empurrões, tapas, camisas puxadas e rasteiras – tudo o mais discretamente possível no início e logo de maneira selvagem – o juiz apita freneticamente, corre para o rodamoinho, e agita os braços de maneira eloquente, transmitindo para os jogadores que agora o olham como cordeiros injustiçados, a mensagem definitiva de que não tolerará  semelhante comportamento. Afasta-se o juiz, e espera que o agarra-agarra seja apenas mais comedido. Este juiz está lidando com pessoas escolarizadas, do gênero homo sapiens, e que sabem tudo do é legal e ilegal num jogo de futebol, conhecem as regras do jogo. A competição de última hora vira circo. É ilegal, mas não é o mesmo tipo de crime de quem rouba.

Os custos maiores vêm do fato dos políticos passarem a tratar de interesses paroquiais, mencionados acima, prejudicando a visão dos interesses da nação. Para muitos, na nossa cultura política, ainda aparece legítimo um deputado defender interesses de quem o elegeu, ou de quem financiou a sua campanha. Mas a deformação da política torna-se inevitável. Para Jorge Hage, Controlador-geral da União, “as emendas orçamentárias individuais pulverizam os recursos públicos em obras de interesse público menor; esvaziam a discussão sobre temas de interesse nacional, pois o parlamentar federal passa a exercer o papel de vereador; e representam o principal caminho para os desvios de dinheiro público verificado pela Controladoria-Geral da União (CGU).” Jorge Hage, in Cambraia, p. 19 – O argumento é correto, ainda que dizer que se trata do principal caminho para desvios do dinheiro público seja exagero. Conforme vimos, há caminhos muito mais transitados. Texto de J. Hage http://congressoemfoco.uol.com.br/noticia.asp?cod_canal=12&cod_publicacao=35621


Estamos aqui passando a mão na cabeça da ilegalidade? Longe disto, estamos tentando solucionar, ir além de fazer de conta que pegamos o culpado. Não é secundário que, no caso dos grandes acusados no Supremo, ninguém tenha embolsado dinheiro, e que sequer disto sejam acusados. No caso da França mencionado, enquanto a apropriação foi drasticamente criminalizada (tolerância zero), para o empurra-empurra em torno das votações, o problema não foi enfrentado criminalizando os políticos que ultrapassaram os limites ao batalhar as suas posições, e muito menos criminalizando um lado e inocentando outro. Foi enfrentado endurecendo as regras, tornando muito mais transparentes os processos, definindo mais claramente os mecanismos. Não há bala de prata que tudo resolva. Hoje, com o Rapport Jospin encomendado por François Hollande, a França tenta racionalizar de maneira mais ampla o processo decisório político. Le Monde, 10 novembre 2012

No nosso caso, é vital reduzir, – e voltamos aqui ao nó górdio do financiamento corporativo das campanhas – o número de representantes que apenas empurram interesses pelos quais são pagos, e cujo interesse principal, portanto, não é o interesse público.  A lei que entrou em vigor em maio 2012, Lei da Transparência, que obriga todos os segmentos da administração pública, em todos os níveis de governo, a fornecer de maneira transparente as informações sobre as suas transações, faz parte deste gradual e penoso saneamento político. Não é só, evidentemente, no nível federal que se trava a luta. No caso do Estado de São Paulo, segundo a imprensa da Assembleia, “uma proposta, assinada por deputados do PT paulistas, sugeriu a criação de um módulo específico no SIGEO – Sistema de Informações Gerenciais da Execução Orçamentária – para acompanhamento da execução orçamentária. Lá seria possível encontrar projetos especificando o número da emenda, nome e partido do parlamentar; nome do órgão, do programa e da ação referente à emenda; valores previsto, empenhado e pago. A proposta foi vetada.”

ALESP, Emenda parlamentar em São Paulo, 28 de set. de 2011)  http://blogs.estadao.com.br/radar-politico/2011/09/28/emenda-parlamentar-em-sp-entenda-o-tramite/ Veja-se também o Manual de Emendas ao Orçamento 2012, Congresso Nacional, Brasilia 2011, p. 4 http://www.camara.gov.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/or2012/emendas/manual_emendas_ploa_2012.pdf;

A lei da ficha limpa foi outro avanço. Mas chegará a hora em que deveremos enfrentar a racionalização e atualização do nosso processo decisório, o que envolve tanto a dimensão da área política como da área privada que dela se apropria.

No conjunto, seguimos aqui as visões de Lawrence Lessig, jurista de Harvard que já trabalhou na Corte Suprema dos EUA: quando tantos praticam ilegalidades, é preciso olhar o sistema, gerar transparência, mudar as formas de financiamento, introduzir sistemas mais eficientes de gestão, resgatar a dimensão pública do Estado. Os grandes desvios são suficientemente grandes para serem legais. Apesar das imensas resistências nos diversos níveis de legislativos e das grandes corporações, a reforma política está amadurecendo. Encontrar bodes expiatórios não resolve. Como dissemos, o sistema permanece, e agradece. Lawrence Lessig, Republic Lost: how money corrupts congress – and a plan to stop it – Twelve, New York, Boston, 2011 – Professor de direito de Harvard, ex-assessor da Corte Suprema dos Estados Unidos, Lessig traz a análise mais sistemática sobre como enfrentar o controle do grande dinheiro sobre a política.

5 – Os paraísos fiscais

O resultado do conjunto destas atividades legais, de legalidade duvidosa, ou ainda francamente ilegais, é esta imensa confusão relativamente ao nosso sistema de alocação de recursos. E administrar bem um país, é alocar os recursos onde terão os efeitos mais positivos, ao melhorar a produtividade sistêmica, ao contribuir para a qualidade de vida da população, ao assegurar um desenvolvimento sustentável. Em particular, quando olhamos o sistema de maneira mais ampla, constatamos que uma dimensão essencial ficou radicalmente deformada, que é o que assegurava, através de mecanismos de mercado e de sistemas regulatórios do Estado, uma certa proporcionalidade entre os ganhos e a contribuição produtiva para a sociedade. Este divórcio, entre ficar individualmente rico e ser socialmente útil, gera uma crescente convicção de que o sistema tal como funciona está moralmente comprometido e economicamente disfuncional. Na realidade, é frequentemente mais remunerado quem menos merece. Uma excelente explicitação dos mecanismos pode ser encontrada no ensaio Apropriação Indébita, de Gal Alperovitz e Lew Daly, editado pelo Senac, 2010.  http://dowbor.org/2010/11/apropriacao-indebita-como-os-ricos-estao-tomando-a-nossa-heranca-comum.html/

Qualquer bom profissional pode legitimamente ganhar a sua vida, por exemplo numa atividade bancária, mas quer também ter o sentimento de que está fazendo algo útil, e em todo caso de não estar contribuindo para fraudes e pilantragens. O homo politicus não é uma espécie a parte, e também partilha deste sentimento. Mas quando o sistema é deformado, o político honesto no dia a dia se vê reduzido a fechar os olhos sobre muitas coisas, e pior, fazer muitas coisas, não necessariamente por desonestidade, mas porque mesmo que tenha por objetivo reduzir o mar de lama qualquer um termina enlameado. Já para ser eleito, no sistema atual, são necessários rios de dinheiro, e por tanto financiadores, e por tanto dependências além do bem público. A contradição não é um privilégio do setor público. Quem trabalha no Serasa e tem de punir uma pessoa que não conseguiu pagar 238% de juros no cartão deve pensar duas vezes.

Vamos ficar à espera da política limpa que um dia se espera existir? A questão não está em que alguns políticos desonestos estejam corrompendo a política. É que a política da maneira como está organizada torna-se uma máquina de moer talentos e reputações, de destruição de pessoas que nela entram.

O que temos pela frente, se quisermos assegurar um desenvolvimento sustentável, uma sociedade decente, a redução das desigualdades, a transparência nas contas, o uso dos recursos em função do que a sociedade realmente necessita, é muito mais amplo do que a simples criminalização de alguns políticos, ainda mais quando se transforma em perseguição ideológica mal disfarçada.

O núcleo duro de resistência é o sistema de intermediação financeira, são os grandes grupos que ao fim e ao cabo intermedeiam todas estas operações, e que se recusam resolutamente, a pretexto de proteger os clientes, de divulgar efetivamente os dados. James S. Henry, no seu estudo sobre o sistema planetário de finanças ilegais, traz uma constatação interessante: “O caráter secreto do setor privado e as políticas oficiais de governo que o protegem colocaram a maior parte das informações que precisamos fora de limites, ainda que, em princípio, estejam facilmente disponíveis. Em muitas maneiras, a questão política essencial é – quais são os custos e os benefícios de tanto segredo?”  James Henry – The Price of off-shore revisited – http://www.taxjustice.net/cms/front_content.php?idcat=148

No estudo que publicamos com Ignacy Sachs e Carlos Lopes, Crises e Oportunidades em tempos de Mudança, destacamos um objetivo central: resgatar a dimensão pública do Estado (Crises e Oportunidades em tempos de mudança – 2010, 21p. http://dowbor.org/2010/01/crises-e-oportunidades-em-tempos-de-mudanca-jan-2.html/ ; ver também L. Dowbor, Democracia Econômica, http://dowbor.org/blog/wp-content/uploads/2012/06/12-DemoEco1.doc. Este continua a ser, na minha opinião, o desafio central. E isto passa, evidentemente, pela reforma política, em particular a reforma do financiamento das campanhas. Perdoem a repetição, mas enquanto tivermos, no congresso realmente existente – e isto se aplica evidentemente aos outros níveis de governo – uma bancada ruralista, uma bancada dos grandes bancos, das grandes empreiteiras, das grandes montadoras, da grande mídia, e pouca bancada cidadã, vai ser difícil. E tentar entender o desvio de dinheiro público sem entender como a política está articulada com quem deste desvio se beneficia, não faz sentido.

O dinheiro da corrupção gira em um circuito de interessados: os grandes beneficiários empresariais ou donos de fortunas pessoais, as instituições financeiras que fazem as transferências, gerem o dinheiro ilegal e também se beneficiam no processo, e os políticos que criam o seu contexto institucional. E não esqueçamos o judiciário, que não é de maneira alguma estranho ao processo, por dar suporte legal, por conivência ou por omissão. Neste quadrilátero devemos focar as atenções, pois são segmentos articulados. É também a minha convicção de que estamos, lenta e penosamente, avançando.

Um dos efeitos indiretos da crise mundial, é que há um forte avanço recente no estudo dos grandes grupos econômicos e das grandes fortunas. Aliás, o imenso esforço de comunicação destinado a atribuir a crise financeira mundial ao comportamento irresponsável dos pobres, seja nos EUA ou na Grécia, é patético. Um estudo que sobressai, de autoria da Instituto Federal Suiço de Pesquisa Tecnológica (ETH na sigla alemã), constatou que 147 corporações, das quais 75% são grupos financeiros, controlam 40% do sistema corporativo mundial. No círculo um pouco mais aberto, 737 grupos controlam 80%. Nunca houve, na história da humanidade, nada de parecido com este nível de controle planetário através de mecanismos econômicos e financeiros. A apropriação ou no mínimo fragilização das instituições políticas, frente a estes gigantes, torna-se hoje fato comprovado. Para uma análise sumária dos resultados da pesquisa do ETH, ver http://dowbor.org/2012/02/a-rede-do-poder-corporativo-mundial-7.html/

Corroborando esta pesquisa, e focando inclusive em grande parte os mesmos bancos, temos hoje outra pesquisa de grande porte, liderada por James Henry, ex-economista chefe da McKinsey, e realizada no quadro da Tax Justice Network. Em termos resumidos, o estoque de recursos aplicados em paraísos fiscais é hoje da ordem de 21 trilhões de dólares, um terço do PIB mundial. O Brasil participa generosamente com cerca de 520 bilhões de dólares, um pouco mais de um trilhão de reais, cerca de um quarto do nosso PIB. São dados obtidos através de cruzamento de informações dos grandes bancos, do BIS de Basiléia, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, de Bancos Centrais e de várias instituições de pesquisa ou de controle. Nada de invenções: trata-se no essencial de juntar os dados de forma organizada, com metodologia clara e transparente, e indicações da relativa segurança ou insegurança dos dados a cada passo. Esta peça informativa fazia muita falta, e passamos agora a ver o que acontece com tanto dinheiro ilegal que resulta das várias formas de corrupção (“A significant fraction of global private financial wealth — by our estimates, at least $21 to $32 trillion as of 2010 — has been invested virtually tax-free through the world’s still expanding black hole of more than 80 “offshore” secrecy jurisdictions. We believe this range to be conservative, for reasons discussed below. On this scale, this “offshore economy” is large enough to have a major impact on estimates of inequality of wealth and income; on estimates of national income and debt ratios; and – most importantly – to have very significant negative impacts on the domestic tax bases of key “source” countries (that is, countries that have seen net unrecorded private capital outflows over time)” p. 3 – The Price of off-shore revisited – http://www.taxjustice.net/cms/front_content.php?idcat=148 Os dados sobre o Brasil estão no Appendix III, (1) p. 23 http://www.taxjustice.net/cms/upload/pdf/Appendix%203%20-%202012%20Price%20of%20Offshore%20pt%201%20-%20pp%201-59.pdf).

Vamos entrar um pouco no detalhe do estudo, pois o fato de se poder esconder dinheiro ilegal, em gigantescos volumes, a partir de qualquer parte do mundo, é essencial para o vigor e a dinâmica crescente dos sistemas de corrupção, tanto no mundo empresarial como no mundo político, um sustentando o outro.

Primeiro, as fontes: “O presente estudo emprega quatro enfoques básicos de estimativas: (1) um modelo “fontes e usos” para os fluxos de capital não registrados país por país; (2) um modelo de “riqueza acumulada offshore”;  (3) um modelo de portfólio de investimentos offshore; (4) estimativas diretas de ativos offshore nos 50 principais bancos privados globais. Para compilar estas estimativas, o estudo utilizou os dados disponíveis mais recentes do Banco Mundial, do FMI, das Nações Unidas, de bancos centrais, e as contas nacionais para modelar explicitamente os fluxos de capital para cada membro de um subgrupo de 139 países “fonte” que publicam este tipo de dados”.

Segundo, o enfoque do estudo se concentrou menos nos fluxos e mais nos estoques acumulados de capital, o que permite identificar não só os fluxos como os ganhos de aplicação dos capitais clandestinos. “Ao deslocar a atenção de fluxos para os estoques acumulados de riqueza no exterior, este estudo chama a atenção para o fato que a retenção de ganhos de investimentos no exterior pode facilmente tornar-se tão significativa que os fluxos iniciais são a partir de certo momento sobrepujados pela “fuga escondida”, com o estoque escondido de riqueza privada não registrada gerando suficiente renda não registrada para manter o seu crescimento muito tempo depois que as saídas iniciais pararam”. Ganhos, evidentemente, que escapam dos impostos, serviço prestado pelos bancos. O estudo estima a evasão fiscal resultante em 189 bilhões de dólares ao ano.

Terceiro, há um complexo sistema de arranjos jurídicos e mudanças de localização legal que torna difícil o seguimento. “O termo ‘offshore’ não se refere tanto à localização física de ativos ou passivos privados, mas locais frequentemente muito temporários de redes de entidades e arranjos legais ou quase-legais, nominais, hiper-portáteis, multi-jurisdicionais, sempre no interesse dos que os administram, supostamente no interesse dos proprietários que se beneficiam, e frequentemente com indiferença ou desafio aberto relativamente aos interesses e leis de numerosos estados-nação.” Para isto o sistema se apoia nas amplas redes dos grandes bancos. O estudo menciona os grupos dominantes neste processo, que administram cerca de tres quartos destes capitais: UBS, Crédit Suisse, Citigroup/SSB/Morgan Stanley, Deutsche Bank, BankAmerica/Merrill Lynch, JPMorganChase, BNP Paribas, HSBC, Pictet & Cie, Goldman Sachs, ABN Amro, Barclays, Crédit Agricole, Julius Baer, Societe Générale, e Lombard Odier.

Quarto, os capitais não estão propriamente alocados nos paraísos fiscais, ainda que tenham ali a sua residência formal. Não se trata de cofres em paraísos tropicais, mas de contas administradas pelos grandes bancos. “Resulta que este setor offshore coberto de segredos – que se especializa essencialmente em evasão fiscal e lavagem dos resultados de uma miríade de atividades duvidosas – não é um arquipélago de paraísos exóticos e não relacionados, mas uma indústria global muito lucrativa, a “indústria da pirataria bancária global”. Esta indústria foi basicamente desenhada e tem sido operada há décadas, não por obscuros bancos sem nome localizados em ilhas paradisíacas, mas pelos maiores bancos privados, bem como firmas jurídicas e de contabilidade de proa. Todas estas instituições estão baseadas, não em ilhas, mas nas maiores capitais do primeiro mundo como Nova Iorque, Londres, Genebra, Frankfurt e Cingapura”.

Finalmente, um fato essencial: trata-se de recursos pertencentes a uma minoria ínfima de muito-ricos. “Como a parte esmagadora de ativos privados offshore não registrados que identificamos pertence a uma minúscula elite, o impacto sobre a desigualdade é surpreendente. (…) Do ponto de vista do ‘mercado pirata privado’, o que é talvez o mais interessante nesta paisagem de desigualdade global, é que estamos revelando a emergência recente de uma verdadeira elite transnacional privada, uma fração relativamente ínfima da população mundial que compartilha necessidades e interesses surpreendentemente semelhantes em termos de segredo financeiro, serviços bancários, impostos e regulação.”

O conceito de desigualdade está sendo revisto. A partir de certo nível, o que é eticamente contestável torna-se economicamente pernicioso porque desarticula a própria política econômica. O tão conservador The Economist decidiu recentemente rever a sua defesa dos privilégios, e descreve, em amplo relatório especial, os impactos reais: “As desigualdades crescentes em muitos países estão começando a preocupar até os plutocratas. Uma pesquisa realizada para a reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos apontou a desigualdade como o problema mais premente da próxima década (junto com os desequilíbrios fiscais). Em todos os setores da sociedade, há um acordo crescente de que o mundo está se tornando mais desigual, e que as disparidades atuais e as suas prováveis trajetórias são perigosas…A história instável da América Latina, durante longo tempo o continente com a maior desigualdade de renda, sugere que países administrados por ricas elites entrincheiradas não funcionam muito bem.” (The Economist, 13-19 outubro 2012, Special Report on the World Economy, p. 6; o relatório representa uma guinada importante do Economist, que durante décadas apresentou a desigualdade como um mal necessário, forma de concentrar recursos nas mãos de quem investe. Hoje o sistema alimenta o cassino financeiro. A publicação apresenta a sua nova visão como “progressivism”). Não se trata de invejar os ricos, e sim de reduzir a máquina de desorganização econômica que geraram, com segredos e ilegalidades a cada passo, e influências sobre os sistemas legislativo e judiciário.

A nós interessa particularmente o mecanismo financeiro, naturalmente, porque se trata da base de sustento – a extraterritorialidade jurídica, por assim dizer, e garantia de impunidade – de todo o sistema de corrupção. Mas sobre tudo interessa o impacto político. “Isto também significa que como grupo esta elite transnacional tem, em princípio, um forte interesse em garantir impostos mais fracos sobre a renda e a riqueza, em fragilizar a capacidade de regulação do governo, em assegurar mercados mais ‘abertos’, e em fragilizar as restrições sobre a influência política e gastos de campanhas além das fronteiras – com um enorme ‘exército do paraíso’ com banqueiros piratas, empresas de advocacia, empresas de contabilidade, lobistas e empresas de relações públicas aos seus serviços.”

Assim, o Brasil não está isolado, neste sistema planetário, nem é particularmente corrupto. Mas o conjunto criado é sim profundamente corrompido. Os dados para o Brasil, em termos de capitais offshore, são de toda forma impressionantes, ocupamos o quarto lugar no mundo. Em termos de valores, o Brasil tem em paraísos fiscais um total de 519,5 bilhões de dólares. Vemos também como outros países latino-americanos enfrentam o mesmo mal, inclusive proporcionalmente mais grave. Evasão fiscal é crime. E a origem deste dinheiro escapa a qualquer escrutínio. Enquanto os grandes bancos estiverem protegidos pelo segredo, não poderemos no país focar o que realmente interessa. Segundo a expressão tradicional, estaremos enxugando o chão, mas a torneira seguirá aberta. Para a tabela abaixo, ver Appendix III, (1) p. 23 http://www.taxjustice.net/cms/upload/pdf/Appendix%203%20-%202012%20Price%20of%20Offshore%20pt%201%20-%20pp%201-59.pdf

Sem dúvida, temos imensas tarefas pela frente. Os paraísos fiscais, que colocam ao abrigo das investigações o grande dinheiro, foram objeto de declarações fortes do G20, e de nenhuma ação. Os grandes bancos, que acumulam fraudes e ilegalidades impressionantes, recebem dinheiro público para sanarem os buracos que criaram. A dupla contabilidade, lavagem de dinheiro, facilidades para evasão fiscal, manipulação de dados para Libor e Euribor, e evidentemente investimentos pesados nas eleições – as práticas se tornaram generalizadas. Ver por exemplo, para o caso das ilegalidades do HSBC, o Financial Times de 10 de nov. de 2012, p. 13. Outro artigo do Financial Times aponta a articulação de Wall Street com a direita americana. Os grupos financeiros apostaram pesado no Romney. Com a subida de Obama, “financial stocks, in particular, saw sharp losses as the sector declined 2.3 per cent. JPMorgan Chase fell 3.2 per cent to $4.1, Citigroup shed 3.1 per cent to $, Morgan Stanley moved 5.1 per cent lower to $51.12 and Goldman Sachs lost 4.8 per cent to 117.42.” (ibid., p. 14

Vimos, nesta pequena série de artigos sobre os descaminhos do dinheiro, os 2 bilhões de reais que nos custou a campanha eleitoral de 2012, a transferência de mais de 100 bilhões por ano do governo para os grandes bancos através da taxa Selic, os mais de 50 bilhões de reais que nos custa o cartel dos grandes bancos através de agiotagem, os cerca de 20 bilhões de reais que nos custam as emendas parlamentares individuais e as “rachadinhas”, o escoamento dos recursos gerados para paraísos fiscais, cerca de um trilhão de reais no caso do Brasil. Isto em custos diretos. Muito mais nos custa, evidentemente, a deformação das próprias decisões econômicas ao se priorizar ganhos financeiros sobre os ganhos produtivos, infraestruturas de transporte individual sobre o coletivo, o rodoviário sobre o ferroviário e o aquaviário, a saúde curativa sobre a preventiva e assim por diante. Estes mecanismos formam parte do sistema que mantém a imensa desigualdade no país, o elevado ‘custo Brasil’, e o desvio de recursos que poderiam ser produtivamente investidos.

O Brasil, lentamente, está avançando. A taxa Selic está baixando fortemente, fechando uma das principais torneiras de vazamento de recursos públicas e economizando bilhões a cada queda de 1% da taxa Selic. Através da redução gradual dos juros ao tomador final os bancos oficiais estão sendo lentamente reintroduzidos mecanismos de mercado no sistema comercial cartelizado de intermediação financeira. A recente Lei da Transparência, que obriga os governos a disponibilizar os dados, foi um imenso avanço cujos efeitos se farão rapidamente sentir, ainda que falte aqui avançar na transparência do sistema financeiro. As medidas que finalmente criaram uma capacidade administrativa de enfrentar a cartelização (o “super-CADE”) abrem um início de perspectivas para a reintrodução da concorrência na economia (Sobre esta iniciativa do governo, ver o artigo no Economist, 5 de agosto de 2012). A lei da ficha limpa é um progresso muito significativo. Não vê os avanços quem não quer. Mas o caminho pela frente é longo. Não há “show” jurídico que substitua o paciente trabalho de resgate da governança econômica e política, nas suas diversas dimensões.

http://dowbor.org/2012/12/os-caminhos-da-corrupcao-uma-visao-sistemica-dezembro-de-2012-25-p.html/

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Dúvida

Nesse fim de semana, zapeando os canais da TV, me deparei com um filme já começado, mas a cena em que peguei era tão forte, tão bem feita e com tão bons atores que resolvi não tirar e acompanhar ele até o final. Pelo pouco que vi, me deu vontade de baixá-lo para vê-lo completo, mas não sabia o que me esperava nos 5 minutos finais do filme. Uma cena tão chocante e tocante que me fez chorar por ter, dentro de mim, aquele sentimento e nunca ter sabido expressá-lo.

Essa talvez seja minha grande dor na vida.


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Virose

Tô louco para pegar essa virose... Quem souber quem está infectado, me avise... ;)


segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Visionários do Caminho

Um crime não justifica o outro....então o argumento é: Nem dois pesos e duas medidas...


 Supremo Tapetão Federal

Derrotada nas eleições, a classe dominante brasileira usou o estratagema habitual: foi remexer nos compêndios do "Direito" até encontrar casuísmos capazes de preencher as ideias que lhe faltam nos palanques. Como se diz no esporte, recorreu ao tapetão.

O casuísmo da moda, o domínio do fato, caiu como uma luva. A critério de juízes, por intermédio dele é possível provar tudo, ou provar nada. O recurso é também o abrigo dos covardes. No caso do mensalão, serviu para condenar José Dirceu, embora não houvesse uma única evidência material quanto à sua participação cabal em delitos. A base da acusação: como um chefe da Casa Civil desconhecia o que estava acontecendo?

A pergunta seguinte atesta a covardia do processo: por que então não incluir Lula no rol dos acusados? Qualquer pessoa letrada percebe ser impossível um presidente da República ignorar um esquema como teria sido o mensalão.

Mas mexer com Lula, pera aí! Vai que o presidente decide mobilizar o povo. Pior ainda quando todos sabem que um outro presidente, o tucano Fernando Henrique Cardoso, assistiu à compra de votos a céu aberto para garantir a reeleição e nada lhe aconteceu. Por mais não fosse, que se mantivessem as aparências. Estabeleceu-se então que o domínio do fato vale para todos, à exceção, por exemplo, de chefes de governo e tucanos encrencados com licitações trapaceadas.

A saída foi tentar abater os petistas pelas bordas. E aí foi o espetáculo que se viu. Políticos são acusados de comprar votos que já estavam garantidos. Ora o processo tinha que ser fatiado, ora tinha que ser examinado em conjunto; situações iguais resultaram em punições diferentes, e vice-versa.

Os debates? Quantos momentos edificantes. Joaquim Barbosa, estrela da companhia, exibiu desenvoltura midiática inversamente proporcional à capacidade de lembrar datas, fixar penas coerentes e respeitar o contraditório. Paladino da Justiça, não pensou duas vezes para mandar um jornalista chafurdar no lixo e tentar desempregar a mulher do mesmo desafeto. Belo exemplo.

O que virá pela frente é uma incógnita. Para o PT, ficam algumas lições. Faça o que quiser, apareça em foto com quem quer que seja, elogie algozes do passado, do presente ou do futuro --o fato é que o partido nunca será assimilado pelo status quo enquanto tiver suas raízes identificadas com o povo. Perto dos valores dos escândalos que pululam por aí, o mensalão não passa de gorjeta e mal daria para comprar um vagão superfaturado de metrô. Mas como foi obra do PT, cadeia neles.

É a velha história: se uma empregada pega escondida uma peça de lingerie da patroa para ir a uma festa pobre, certamente será demitida, quando não encarcerada --mesmo que a tenha devolvido. Agora, se a amiga da mesma madame levar "por engano" um colar milionário após um regabofe nos Jardins, certamente será perdoada pelo esquecimento e presenteada com o mimo.

Nunca morri de admiração por militantes como José Dirceu, José Genoino e outros tantos. Ao contrário: invariavelmente tivemos posições diferentes em debates sobre os rumos da luta por transformações sociais. Penso até que muitas das dificuldades do PT resultam de decisões equivocadas por eles defendidas. Mas num país onde Paulo Maluf e Brilhante Ustra estão soltos, enquanto Dirceu e Genoino dormem na cadeia, até um cego percebe que as coisas estão fora de lugar.
ricardo melo

Ricardo Melo, 58, é jornalista. Na Folha, foi editor de "Opinião", editor da "Primeira Página", editor-adjunto de "Mundo", secretário-assistente de Redação e produtor-executivo do "TV Folha", entre outras funções. Atualmente é chefe de Redação do SBT (Sistema Brasileiro de Televisão). Também foi editor-chefe do "Diário de S. Paulo", do "Jornal da Band" e do "Jornal da Globo". Na juventude, foi um dos principais dirigentes do movimento estudantil "Liberdade e Luta" ("Libelu"), de orientação trotskista.

Lucidez....


Com a prisão de Dirceu e Genoino, fecha-se um ciclo
Luis Nassif

A democracia se consolida nos grandes processos bem conduzidos de inclusão social e política.

Em determinados momentos da história, emergem novas forças políticas, inicialmente em estado bruto, ganhando espaço com a radicalização do discurso contra o status quo.

Em todos os tempos, as democracias passam por processos de estratificação nos quais os grupos que chegaram antes ao poder levantam um conjunto amplo de obstáculos – políticos, econômicos e legais – para impedir a ascensão dos que chegam depois.

Trava-se, então, uma luta feroz, na qual os grupos emergentes radicalizam o discurso, enfrentam as leis, as restrições e vão abrindo espaço na porrada.

É a entrada definitiva no jogo político que disciplina esas forças, enriquece a política e reduz os espaços de turbulência. Todos ganham. Rompe-se a inércia dos partidos tradicionais, amaina-se o radicalismo dos emergentes; abre-se mais espaço para a inclusão; permite-se uma rotatividade de poder que derruba a estratificação anterior.

Sem essas lideranças, as disputas políticas iniciais enveredam para o conflito permanente, deixando o legado de nações conflagradas, como na Colômbia e no México.

Daí a importância essencial dos líderes que unificam a ação, impedem a explosão das manadas e montam estratégias factíveis de tomada do poder dentro das regras do jogo.

Acabam enfrentando duas espécies de incompreensão. Dos adversários políticos, a desconfiança sobre suas reais intenções, manobrando o receio que toda sociedade tem em relação ao novo. Dos aliados, a crítica contra o que chamam de “acomodamento”, a troca do sonho por ações pragmáticas.

Em seu estudo sobre Mirabeau, Ortega y Gasset define bem o perfil do estadista e de outros personagens clássicos da política: o pusilânime e o intelectual. O estadista só tem compromisso com a mudança do Estado. É capaz de alianças com o diabo, desde que permita a suprema ambição de mudar um país, um povo. Já o intelectual se vale todos os argumentos do escrúpulo como álibi para a não ação.

Aliás, nada mais cômodo que o niilismo de um Chico de Oliveira, do bom mocismo de Eduardo Suplicy, dos homens que pairam acima dos conflitos, como Cristovam Buarque, dos apenas moralistas, como Pedro Simon. Para não se exporem, não propõem nada, não se comprometem com nada, a não ser com propostas genéricas de aprovação unânime que demonstrem seus bons sentimentos, sua boa índole, sua integridade intelectual – e que quase nunca resultam em mudanças essenciais.
 
As mudanças no PT

É por esse prisma que deve ser analisada a atuação não apenas de Lula, mas de José Dirceu e José Genoíno.

Ambos passaram pela luta armada. Com a redemocratização, ingressaram na luta política e das ideias. E ambos foram essenciais para a formação do novo partido e para a consolidação do mito Lula.

Na formação do PT, cada qual desempenhou função distinta.

José Genoíno sempre foi o intelectual refinado. Durante um bom período dos anos 90 tornou-se um dos mais influentes formadores de opinião do Congresso e do país, com suas análises sobre regimento da Câmara, sobre reforma política, sobre defesa.

Já José Dirceu era o “operador”, trabalhando pragmaticamente para unificar o PT em torno de um projeto de tomada do poder e, a partir daí, de reformas.

A estratégia política do PT passava por sua institucionalização, por um movimento em direção à centro-esquerda, ocupando o espaço da socialdemocracia aberto pelo PSDB – devido à guinada neoliberal conduzida por Fernando Henrique Cardoso e à ausência de lideranças sindicais.

Não foi um desafio fácil. O PT logrou juntar em torno de si uma multiplicidade de movimentos sociais, a parte mais legítima do partido mas, ao mesmo tempo, a parte menos talhada para a tomada de poder. Foram movimentos que surgiram à margem do jogo político, desenvolvendo-se nos desvãos da sociedade civil e sem nenhuma vontade de se sujar com a política tradicional.

Por outro lado, o papel unificador de Lula o impedia de entrar em divididas. Tinha que ser permanentemente o mediador.
 
O papel do operador Dirceu

Sobrava para Dirceu o papel pesado de mergulhar no barro. De um lado, com o enquadramento das diversas tendências – o que fez com mão de ferro -, dando ao PT uma homogeneidade que tirava o brilho inicial do partido, mas conferia eficiência no jogo político tradicional trazendo-o para o centro.

E o jogo político exigia muito mais do que enquadrar os grupos sociais do PT.

As barreiras eram enormes. Passava por montar formas de financiamento eleitoral, pela aproximação com o status quo econômico, pelos pactos com os grupos que atuam na superestrutura do poder, com os operadores dos grandes interesses de Estado, pelo mercado, pelo estamento militar, pela mídia.

Dirceu foi essencial para essa transição, tanto para dentro como para fora.

Um retrato honesto dele, mostrará a liderança inconteste sobre largas faixas do PT, o único a se ombrear com Lula em influência interna e com uma visão do todo que o coloca a léguas de distância de outros pensadores do partido.

Mas também era dono de um voluntarismo até imprudente.

Lembro-me de uma conversa com ele em 1994 em Brasília, com Lula liderando as pesquisas. Falava do projeto popular do PT e do projeto de Nação das Forças Armadas, sugerindo um pacto não muito democrático.

Não por outro motivo, em diversas oportunidades Lula confessou que, se tivesse sido eleito em 1994, teria quebrado a cara.

Com o tempo, o voluntarismo foi sendo institucionalizado. Internamente, no governo, Dirceu exercia uma pressão similar à de Sérgio Motta sobre FHC. Queria avançar mais, queria menos cautela na política econômica, queria um projeto de industrialização.

Sua grande obra de arte política, nos subterrâneos do poder, no entanto, foi ter mapeado os elos da superestrutura que garantia FHC e inserido o PT no jogo.

Esse mapeamento resultou na viagem aos Estados Unidos, desarmando as desconfianças do Departamento de Estado, dos empresários e da mídia; a ocupação de cargos-chave no Estado, que facilitaram negociações políticas com grupos de influência. Nada que não fosse empregado pelos partidos que já haviam chegado ao poder e que precisaram garantir a governabilidade em um presidencialismo torto como o nosso.
O veneno do excesso de poder

Assim como Sérgio Motta, no entanto, as demonstrações de excesso de poder tornaram-no alvo preferencial da mídia.

Trata-se de uma regra midiática clássica, que não foi seguida por ambos. Quando a mídia sente alguém com superpoderes, torna-se um desafio derrubá-lo. Com exceção de ACM e José Serra – a quem os grupos de mídia deviam favores essenciais e, em alguns casos, a própria sobrevivência -, todos os políticos que exibiram musculatura excessiva – de Fernando Collor ao próprio FHC (no período de deslumbramento), de Sérgio Motta a José Dirceu - terminaram fuzilados.

No auge do poder de Dirceu, creio que foi o Elio Gaspari quem o alertou para o excesso de exibição de influência. Foi em vão.

O reinado terminou em um episódio banal, a história dos R$ 3 mil de propina a um funcionário dos Correios. Tratava-se de uma armação de Carlinhos Cachoeira com a revista Veja, visando desalojar o grupo de Roberto Jefferson para reabilitar os aliados de Cachoeira (http://bit.ly/19sMvtX).

O que era claramente uma operação criminosa midiática, de repente transformou-se em um caso político, por mero problema de comunicação. Roberto Jefferson julgou que a denúncia tinha partido do “superpoderoso” Dirceu, para amainar sua fome por cargos. E deu início ao episódio conhecido por “mensalão”.

E aí Dirceu – e o próprio Genoíno – sentiram o que significa ter chegado tardiamente ao jogo político, não dispor de “berço” e de blindagem contra as armadilhas institucionais do Judiciário e da mídia.
 
A cara feia da elite

É uma armadilha fatal. Para chegar ao poder, tem que se chegar de acordo com as regras definidas por quem já é poder. Mas, sem ter sido poder, não se tem a mesma blindagem dos poderosos “de berço”.

O episódio do “mensalão” acabou explodindo, revelando – em toda sua extensão – a hipocrisia política e jurídica brasileira, o uso seletivo das denúncias, o falso moralismo do STF (Supremo Tribunal Federal).

Nos anos 40, Nelson Rockefeller tinha um diagnóstico preciso sobre o subdesenvolvimento brasileiro: havia a necessidade de um choque de modernidade, de criação de uma classe média urbana que superasse o atraso ancestral das elites brasileiras, dominada pelo pensamento de velhos coronéis.

Uma coisa é a leitura fria dos livros de história, as análises de terceiros sobre a República Velha, sobre o jogo político dos anos 30, 40, 50. Outra, é a exposição dos vícios brasileiros em plena era da informação.

Para a historiografia brasileira, o “mensalão” é um episódio definitivo, para entender a natureza de certa elite brasileira, a maneira como o conservadorismo vai se impondo, amalgamando candidatos a reformadores de poucas décadas atrás, transformando-os em cópias do senador McCarthy. E não apenas no discurso antissocial e na exploração primária ao anticomunismo mais tosco, mas na insensibilidade geral, de chutar adversários caídos, de executar adversários moribundos no campo de batalha, de abrir mão de qualquer gesto de grandeza.

Expõe, também, de maneira definitiva as misérias do STF.

Aliás, Lula e o PT foram punidos pela absoluta desconsideração pelo maior órgão jurídico brasileiro. Só o desprezo pelo STF pode explicar a nomeação de magistrados do nível de Ayres Britto, Luiz Fux, Joaquim Barbosa e Dias Tofolli, somando-se aos inacreditáveis Gilmar Mendes e Marco Aurélio de Mello, à fragilidade de Rosa Weber e Carmen Lucia e ao oportunismo de Celso de Mello.

O resultado final do julgamento foi o acirramento da radicalização, o primado da vingança sobre a justiça, a exposição do deslumbramento oportunista de Ministros sem respeito pelo cargo.

No plano político, sedimentam no PT a mística de Genoino e Dirceu.

Se deixam ou não o jogo político, não se sabe. Mas, com sua prisão, fecha-se um ciclo que levou um partido de base ao poder, institucionalizou um novo jogo político e, sem o radicalismo dos sonhadores sem compromissos, permitiu mudar a face social do país.

Não logrou criar um projeto de Nação, como pensava Dirceu. Mas deixou sua contribuição para a luta civilizatória nacional.

A democracia brasileira deve muito a ambos.

Fonte: http://jornalggn.com.br/noticia/com-a-prisao-de-dirceu-e-genoino-fecha-se-um-ciclo#.UoeIr3lj9bk.facebook