Há algum tempo atrás, quando chegava de mais uma viagem, encontrei meu vizinho de apartamento na portaria do prédio onde moro. Enquanto "desarreava" a moto e retirava a bagagem, aquele senhor de sorriso fácil e rosto bondoso, me contou que seu filho, um garoto de uns dez anos, aficionado por motos, certa vez gastou um tempão lhe falando de histórias sobre nós, motociclistas, mas, que para me ser honesto, não havia prestado muita atenção.
Então, o moleque insistiu no assunto, explicando-lhe sobre as diferenças de motociclistas e motoqueiros, os tipos de motos, uma por uma. Meu vizinho contou-me ainda que indagou ao menino sobre onde aprendera tanto sobre o assunto, e este respondeu que tinha sido comigo, nas minhas constantes saídas e chegadas. Que ao ouvir o ronco da moto, corria pra garagem e ficava observando. Ás vezes arriscava uma e outra pergunta ou comentário. Confesso que não tinha me dado conta da admiração do rapazinho, e me senti envergonhado por não lhe ter dado mais atenção. Na verdade nem me lembrava de termos conversado tantas vezes assim...
Continuando, o simpático senhor finalizou a conversação com a seguinte frase: "Vestindo estas roupas, com estes capacetes diferentes, personalizados, vocês parecem realmente durões... Mas, através do meu filho, pude observá-los melhor, sem receio, e notei que não são menos crianças que ele. Uma vez que as viseiras e óculos são levantados, todos têm olhos bonitos, limpos e cheios de vida. Olhos dentro dos quais se pode olhar, chegar a suas almas e ver quão pura elas são. Ao retirarem suas armaduras de couro no final do dia, pude ver que eram meninos que cresceram e se apaixonaram por brinquedos maiores, nada mais que isso."
E continuou: "Posso agora entender melhor, ou pela primeira vez, o amor que vocês demonstram ter pela vida e o prazer que devem sentir ao ganhar a estrada nas suas máquinas. Consigo identificar os homens por trás do couro. Também posso ver os garotos em êxtase pela nova aventura. E isso tudo nas mesmas pessoas. Eu não me impressionaria se os visse aconchegados no colo de mãe nos momentos de suas amarguras."
Pasmo, me vi concordando com todas as suas afirmações...
Aquela conversa toda me desorientou um pouco: eram aspectos das nossas vidas que nunca tinha ouvido, ainda mais ditos daquela forma, tão desprovidos de maldade ou dos preconceitos típicos.
Lembrei-me de todos os irmãos, das estradas percorridas e dos encontros de cidade em cidade. Lembrei-me dos ditados e das frases de efeito tão usados entre nós... E claro, das pérolas que ouvimos sempre...
Tem gente que diz que quando montamos em nossas motos, anjos e demônios vão conosco! Pode ser até verdade. É um tipo de dualismo que explica muito o nosso estilo de vida ser tão rico em emoções. O gosto que temos de acelerar. Vigorosas, porém conscientes aceleradas. É quando a adrenalina toma conta do cérebro e você sente o corpo tremer em sinergia com o motor que você agora domina. A sensação de o coração bater cada vez mais rápido, parecendo que vai sair pelo peito a qualquer momento, enquanto o ponteiro do velocímetro continua a subir. Ao mesmo tempo, a calma e a paz peculiares aos momentos únicos da vida, fazendo-nos crer que nada mais há no mundo a não ser você, sua moto, a estrada e o horizonte a sua frente. A nítida impressão que o mundo é nosso, e, antagônica, a humilde constatação da nossa pequenez perante a obra da criação.
Por merecimento, aos puros de coração é concedida a honra de serem chamados a integrar o Moto Grupo dos Anjos. Não é incomum recordarmos, comovidos, as imagens, as lembranças, as faces, as vozes e os brasões daqueles que foram pilotar em outras estradas. E choramos. Mas inúmeras foram as provas da suas presenças sempre conosco. Só assim, vencemos nosso egoísmo, e não nos abatemos pela dor de tantas partidas prematuras. Não temos dúvidas que o vento no rosto que apreciamos, se deve, parte ao avanço da moto pelos caminhos e parte ao bater de asas desses irmãos motociclistas que fiéis a nossa frente, nos guiam. Esses anjos, sabiamente, nos cochicham aos ouvidos que acelerar demais nos impede de vermos ao nosso entorno e o que a vida nos oferece de melhor. Que somos motociclista de corpo e alma, e assim devemos continuar. Que não está nos planos divinos nos transformarmos em números estatísticos de imprudência.
Já ouvi dizer em outra oportunidade que somos um BANDO. Pode ser: UM BANDO DE GRANDES E DIFERENTES CRIANÇAS, FELIZES EM SEREM MOTOCICLISTAS!
Se perguntados sobre uma história de nossos últimos "passeios", logo contaremos de alguma curva da estrada da nossa montanha preferida, e você irá ver nossos olhos sorridentes, num sorriso natural, que gradualmente se espalha pelo rosto inteiro.
Mas não nos pergunte como a vida seria se algum dia tivéssemos que desistir de nossa paixão. Tudo que você terá como resposta é o silêncio. Você verá que aquele rosto sorridente do "garoto" ficará vazio como o de um pássaro sem asas.
Sim, eu sei que estamos sujeitos aos tombos, buracos, irresponsáveis atrás dos volantes e outros tantos riscos. Falam-nos tanto de tudo isso que seria impossível esquecer. Mas acredite, não há melhor jeito de se viver o pouco tempo que nos é dado!
Se você não entendeu nada até agora, não se preocupe, você jamais entenderá!
E se um dia você estiver na estrada, na segurança de seu carro, e um de nós passar vagarosamente, você verá seu filho, sentado no banco de trás, de repente virar a cabeça, acenando empolgado. Não se ocupe tentando entendê-lo também. Ele, com toda sua inocência, nos vê sem falsos pudores e sem reticências. Ainda tem dentro do peito aquela centelha de liberdade que muito provavelmente você também já teve, mas deixou apagar ao "se tornar adulto".
E o motociclista irá acenar, emocionado, respeitoso. Invariavelmente você ouvirá a buzina e o ronco do motor. Não há nada de errado nisso. É que anjos na terra se cumprimentam!
Texto adaptado por Jean Max Gonçalves Rabelo
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